MALCOLM X IMORTAL! 

Hoje completam 49 anos anos do assassinato de um dos mais importantes líderes da luta contra o racismo no mundo. Um crime que até os dias atuais, ainda se encontra envolto a nebulosos questionamentos. Tratado em muitas vezes como um mero rival ou antagônico de Martin Luther King, Malcolm X foi muito mais complexo do que uma liderança por direitos civis. Malcolm foi uma personalidade que dividiu opiniões, gerou amores e ódios. Oportunista demagogo com linguagem violenta para alguns, gênio revolucionário é autêntico porta-voz dos negros e oprimidos para outros, alguém que advogou o direito legítimo do oprimido de se autodefender e buscar sua liberdade por todos os meios necessários. Há certeza e que Malcolm cravou seu nome na história, está no panteão dos imortais líderes, referência para diáspora africana e para o continente africano. 

Sua trajetória de vida entrelaçada com sua militância possui características que envolvem ao extremo: bravura, dor, perda,superações é algo fundamental que o tornou esse líder descomunal, foram as reinvenções em sua vida, em 40 anos de existência, Malcolm soube e foi obrigado a reinventar-se várias vezes, da infância marcada pelo terror, o esfacelamento de seu seio familiar, o início de uma adolescência problemática envolvida com atividades erradas, em seguida a guinada com sua conversão religiosa na prisão e sua transformação em um disciplinado integrante de uma pequena organização islâmica da qual foi o responsável por tirar da obscuridade é colocá-la no centro da visão das massas, abdica de sua personalidade para servir de forma obediente um mentor que o utilizou para ganhar poder, mas que posteriormente o traiu de forma vil. Malcolm era uma pessoa extraordinária, sua grandeza não poderia ser eclipsada por figuras menores, em um novo salto revê suas posições religiosas é isso implicam em uma mudança de postura e discurso. Mas nunca perdeu seu ímpeto implacável, sua obstinação por justiça.E justamente por ter tido uma vida marcada por reinvenções, que o escritor, professor Marable Manning, escreveu uma biografia um novo relato sobre a vida é luta de Malcolm. Para Marable a autobiografia publicada em 1965, deixou muitas lacunas para serem preenchidas. Na biografia 'Malcolm X — Uma Vida de reinvenções' o objetivo e lançar um novo olhar sobre esse gigante que jamais deverá ser esquecido. 




Reflexões sobre uma visão revolucionária
Epílogo*

Extraído do livro: Malcolm X – Uma vida de reinvenções,
Autor Manning Marable
Companhia das Letras. 

Uma biografia mapeia a arquitetura social da vida de um indivíduo. O biógrafo traça o mapa da evolução do biografado ao longo do tempo, e os diversos desafios e testes que esse indivíduo enfrenta oferecerem vislumbres do seu caráter. Mas o biógrafo tem um fardo adicional: explicar acontecimentos, perspectivas e ações de outros, que o biografado não poderia ter conhecido, e que no entanto tiveram impacto direto na sua vida.


                         Malcolm X hoje tem um status de ícone no panteão dos heróis americanos multiculturais. Mas na época de sua morte era amplamente vilipendiado e repudiado como demagogo irresponsável. Malcolm  procurou deliberadamente ficar á margem, desafiando o governo dos Estados Unidos e as instituições americanas. Tudo isso teve um custo. O Estado o rotulou como subversivo e um risco para a segurança. A animosidade de J. Edgar Hoover contra Malcolm X, por exemplo resultou em atos de escuta telefônica ilegal, vigilância e intervenções policiais que provavelmente fora além de qualquer coisa que Malcolm pudesse imaginar. Malcolm não estava de todo ciente, até tarde demais, da profunda hostilidade que provocara dentro da Nação do Islã, e que levou um grupo de funcionários em torno de Muhammad a advogar sua morte. Ele depositou a maior confiança num guarda-costas que pode ter planejado e ajudado a realizar sua execução pública. Líderes como Malcolm têm enorme confiança em si e em sua capacidade de convencer os demais. Era extremamente difícil para ele prever, ou mesmo reconhecer, uma traição.


                         A força de Malcolm estava em sua capacidade de reinventar-se, para funcionar até prosperar em ambientes muito diversos. Desenvolveu cuidadosamente sua apresentação física, a maneira de aproximar-se dos outros, utilizando-se de experiências passadas assim como do folclore e da cultura afro-americanos. Teceu uma narrativa de sofrimento e resistência, de tragédia e triunfo, que empolgou a imaginação de negros do mundo inteiro. Viveu a existência de um músico itinerante, viajando constantemente de cidade em cidade, passando noite após noite em pé no palco, manipulando sua melodiosa voz de tenor como um instrumento. Tinha consciência de ser um artista que se apresentava como veículo de transmissão da raiva da impaciência das massas negras. Afro-americanos pobres podiam admirar Martin Luther King, mas Malcolm não só falava a mesma língua, como tinha passado pelas mesmas experiências — em lares adotivos, em prisões, em filas de desemprego. Malcolm era amado porque podia se apresentar como um deles. 


                         Um grande talento dessas notáveis figuras é a capacidade de apreender sua época, de falar para um momento único da história. Tanto Martin como Malcolm foram líderes assim, mas expressaram suas visões pragmáticas de maneiras diferentes. King personificou as lutas históricas travadas por gerações de afro-americanos pela igualdade plena. Estabeleceu, predominantemente, organizações políticas negras, como Montgomery Improvement Association em 1955 e a Southern Christian Leadership Conference em 1957, mas sua ênfase era a conquista da dessegregação e da cooperação inter-racial. King jamais jogou negros contras brancos, ou usou as atrocidades cometidas por extremistas brancos como justificativa para condenar os brancos por atacado. Já Malcolm, por sua vez, durante a maior parte de sua carreira pública tentou colocar brancos na defensiva em suas relações com afro-americanos. Sentia agudamente — e expressava-as — as variadas emoções era o orgulho negro, autorrespeito e a consciência do legado recebido. Numa época em que a sociedade americana estigmatizava e excluía pessoas de ascendência africana, a defesa militante de Malcolm foi surpreendente. Ele deu milhões de afro-americanos mais jovens uma profunda confiança. Essas expressões estavam na base do que em 1966 se tornou movimento Black Power, e Malcolm foi sua fonte original.


                      Malcolm acabou ocupando um espaço central na rica tradição popular de delinquentes e dissidentes negros, em luta contra a hierarquia social estabelecida. Antes da guerra civil, esses homens de resistência se chamavam Gabriel Poster, Nat Turner. Na música afro-americana, a tradição inclui o notório folclore de Stagger Lee, o inventivo guitarrista de blues Robert Johnson e o carismático artista de hip hop Tupac Shakur. O que esses fora da lei negros tinham em comum era um calmo desdém pelo status quo burguês, pelo sistema de supremacia branca, como suas leis, seus tribunais. Mas significativamente, a tradição dos negros fora da lei era transgredir a ordem moral. Nesse sentido, Detroit Red, como Malcolm o construiu, era um anti-herói, o jazzista da moda que ria dos costumes convencionais, que consumia drogas ilegais e praticava sexo ilícito, que violava todas as regras. Um exame mais rigoroso da Autobiografia revela que muitos elementos da narrativa de Detroit Red são fictícios, apesar disso, as experiências do personagem encontram eco nas plateias negras, porque o contexto do racismo, do crime e da violência é parte integral da vida dos guetos.


                   A outra dimensão da aparência de Malcolm era a identidade de pregador integro, do homem que dedicou a vida a Alá. Esse foi outro papel que também teve profundas repercussões na cultura afro-americana. Como sua linguagem poderosa, Malcolm insistiu, audaciosamente, na noção de que o racismo não decidiria o futuro dos negros; e de que em vez disso, pessoas de ascendência africana estavam destinadas á grandeza. Desenvolveu profundo amor pela história dos negros e utilizou em muitas palestras suas intuições tiradas da herança cultural dos afro-americanos e africanos. Malcolm encorajou os negros a celebrarem sua cultura e os relatos de resistência negra ao colonialismo europeu e á dominação branca. E apesar da genuína conversão ao Islã ortodoxo, sua jornada espiritual estava vinculada á sua consciência negra. Poucas semanas depois do seu assassinato, o poeta Amiri Baraka proclamou: “Maior contribuições de Malcolm foi pregar a consciência negra ao homem negro. Agora só precisamos encontrar a carne da nossa criação espiritual”. Para Baraka, Malcolm significava a estética negra, um conjunto de valores e critérios para representações culturais afirmando o gênio e a criatividade das pessoas de ascendência africana. Malcolm forneceu o molde daquilo que os artistas negros deveriam almejar. “O artista negro é necessário para mudar as imagens com que seu povo se identifica, afirmando o sentimento negro, a inteligência negra, o discernimento negro”, disse Baraka. Em março de 1965, Baraka saiu de Greenwich Village e migrou para o Harlem, onde estabeleceu o Teatro-escola de Repertório de Artes Negras ( Black Arts Repertory Theatre School, Barts). Foi o alicerce onde floresceu o movimento moderno das artes negras, envolvendo milhares de poetas, teatrólogos, dançarinos e outros produtores culturais. Malcolm tornou-se a sua musa, a expressão ideal da negritude. Até mesmo o New York Times, numa avaliação da contínua influência no Harlem, observou que a “a ideia central de Malcolm, que firmou depois de sua morte, é que negros precisam se ater estreitamente a sua própria cultura negra, e alimentá-la em vez de ‘integrá-la para que deixe de existir’.


                Stokely Carmichael, talvez o mais importante arquiteto do movimento Black Power, localizou a origem do seu desenvolvimento em Malcolm. Na autobiografia, Carmichael explica que como estudante de Universidade de Howard no começo dos anos 1960 via Bayard Rustin, de início como seu mentor político. Assistiu ao debate entre Rustin e Malcolm em Washington, em 30 de outubro de 1961, certo de que Rustin venceria o debate “de mão atadas”. Mas, como tantos outros, ficou fortemente impressionado com argumentação de Malcolm. “O que Malcolm demonstrou naquela noite... foi o poder bruto, a potência visceral, da influência que nossa negritude coletiva, não expressa claramente em palavras, exercia sobre nós. Nunca vou esquecer. “Três décadas depois do triunfo de Malcolm sobre Rustin, Carmichael ainda se inspirava no homem orgulhoso que era a personificação da negritude. “A luz de um refletor seguiu-o enquanto caminhava, magro, ereto, imaculadamente vestido, para o microfone num palco em tudo o mais escuro.”³


                Existe uma tendência de revisionismo histórico a interpretar Malcolm X pelas lentes poderosas de Martin Luther King: de acordo com essa corrente, a evolução de Malcolm faria dele um reformista liberal pró-integração. Essa opinião não é apenas errada, mas injusta como Malcolm e com Martin Luther King se via, como Frederick Douglas, acima de tudo como um americano, que pretendia obter os mesmos direitos civis e privilégios cívicos desfrutados por outros americanos. Lutou para apagar a faixa colorida de estigma e exclusão que relegava minorias raciais á cidadania de segunda classe. Como na bem-sucedida campanha presidencial de Barack Obama em 2008, King pretendia convencer os americanos brancos de que “raça não tem a menor importância” — em outras palavras, que as diferenças físicas e de cor que parecem distinguir negros de brancos não deveriam ter peso algum na aplicação da justiça e da igualdade de direitos.

                Em nítido contraste. Malcolm se via antes e acima de tudo como um negro, uma pessoa de ascendência africana cidadã dos Estados Unidos. Era uma diferencia crucial que o separava de King e outros líderes de direitos civis. Quando pertencia á Nação do Islã, Malcolm se considerava membro da tribo de Shabazz, fictício clã negro asiático inventado por W. D. Fard. Mas nas fases finais de sua carreira, especialmente em 196-5, Malcolm vinculava sua consciência negra ao imperativo ideológico de autodeterminação, ao conceito de que todos têm o direito de decidir o próprio destino. Malcolm via os americanos negros como uma nação oprimida dentro da nação maior, com cultura, instituições sociais e psicologia de grupos próprias. As lembranças que tinham da luta pela liberdade diferiam completamente das lembranças dos americanos brancos. No fim da vida, percebeu que os negros podiam, de fato alcançar representação e mesmo poder dentro do sistema constitucional dos Estados Unidos. Mas sempre pensou, antes e acima de tudo, nos interesses dos negros — o que muitos negros percebiam instintivamente amando-o por causa disso.

                King apresentou aos americanos brancos uma estreita narrativa sugerindo que os negros estavam preparados para protestar sem violência, e mesmo para morrer, a fim de concretizar a promessa dos fundadores. Malcolm, por sua vez, propunha que os oprimidos tinham o direito natural de autodefesa armada. Sua narrativa era a da história do racismo estrutural — do tráfico transatlântico de escravos á guetização — e seu remédio eram reparações para os negros, uma compensação aos anos de exploração que os negros sofreram. É por essa razão que Malcolm, tivesse ele sobrevivido até os anos 1990, não seria um defensor entusiástico da ação afirmativa como ponto central das reformas de direitos civis. A ação afirmativa jamais pretendeu promover  o pleno emprego, ou a transferência de riqueza para afro-americanos. O que Malcolm buscava era uma reestruturação fundamental da riqueza e do poder nos Estados Unidos — não uma revolução social violenta, mas ainda assim uma mudança radical e significativa.

                Outra diferença crucial entre os dois líderes era sua relação com a classe média afro-americana. King era produto da pequena burguesia instruída e endinheirada de Atlanta. Tinha diplomas de Faculdade Morehouse e da Universidade de Boston; Malcolm saiu da escola sem concluir o primeiro ano do ensino médio. Sua “universidade” foi a Colônia Penal de Norfolk. Mais do que qualquer outro líder negro do século XX, Malcolm exigiu que os negros das classes profissionais e gerenciais tivessem mais responsabilidade para com as massas de pobres e operários afro-americanos. Em discursos como “Mensagem ás bases”, condenou severamente os líderes negros de classe média por seus acordos com mediadores brancos influentes. Exigiu maior integridade e responsabilidade dos negros privilegiados, como elemento essencial da estratégia para alcançar a liberdade dos negros.

                 Em sua história oral de 2003, Ossie Davis explicou, quando lhe perguntaram por que se referia a Malcolm como “esplêndido príncipe negro” em sua oração fúnebre: “Porque um príncipe não é um rei”. Deu a entender que a morte prematura de Malcolm interrompeu sua maturidade e o desenvolvimento de seu pleno potencial de líder. Outra maneira de examinar o achado de Davis é perguntar se a visão de justiça racial de Malcolm é iluminadora. Depois do assassinato de King, sua imagem cresceu, passando de contestador da Guerra do Vietnã e polêmico paladino dos direitos civis a defensor de uns Estados Unidos cegos para a cor da pele. Seu aniversário foi comemorado pelo governo americano como feriado nacional dedicado ao serviço público. Politios de todos matizes ideológicos aplaudem a não violência de King, mas raramente examinam sua feroz impaciência com a injustiça racial e sua relevância para a nossa época. Já Malcolm, durante décadas, foi escarnecido e estereotipado por seu extremismo racial. No entanto, para maioria dos americanos negros ele se tornou figura emblemática de encorajamento dos negros, que destemidamente contestou o racismo onde que o identificasse, e inspirou jovens negros a sentirem orgulho de sua história e cultura. Esses aspectos da personalidade pública de Malcolm ficaram indelevelmente gravados no movimento Black Power, estavam presentes no brado “É a nossa vez!” dos proponentes negros de Harold Washington na vitoriosa campanha do Partido Democrata para prefeito de Chicago em 1983. Estavam expressos parcialmente no comparecimento inédito de eleitores em bairros negros durante as campanhas de Jesse Jackson nas eleições presidenciais de 1984 e 1988 e na bem-sucedida tentativa eleitoral de Barack Obama em 2008. Malcolm de fato previu que o eleitorado negro poderia, potencialmente, representar o equilíbrio de poder numa república branca dividida.


                 A visão revolucionária de Malcolm também desafiou os Estados Unidos branco a pensarem e falarem de outra maneira a respeito de raça. Numa época em que artistas brancos ainda pintavam o rosto de negro para atuar, Malcolm desafiou os brancos a examinarem as políticas e práticas de discriminação racial. Antes de os pós-modernistas escreverem sobre “privilégio branco”, Malcolm falou dos efeitos destruidores do racismo sobre suas vítimas e seus promulgadores. Perto do fim da vida, imaginou a destruição do próprio racismo, e a possibilidade de criar ordem social humana livre de injustiça racial. Ofereceu a esperança de que os brancos pudessem superar séculos de socialização negativa com os negros, e que uma sociedade racialmente justa era viável. Não adotou a “cegueira da cor”, mas, como Frantz Fanon, achava possível desmantelar as hierarquias raciais existentes na sociedade.


              Malcolm também mudou internacionalmente o discurso e a política relativos a raça. Num período em que líderes afro-americanos dedicavam seus esforços para mudar políticas federais e estaduais sobre relações entre raças, Malcolm percebeu que o êxito da luta interna por direitos civis requeria que ela fosse ampliada numa campanha internacional por direitos humanos. As Nações Unidas, não o Congresso ou a Casa Branca, tinham de ser fórum central. Igualmente importantes eram as distinções que ele fez entre política negra dentro dos Estados Unidos e as políticas de libertação na África e no Caribe.
              Apesar de sua retórica radical, como deixa de claro “O voto ou a bala”, Malcolm em sua maturidade acreditava que as afro-americanos poderiam usar o sistema eleitoral e o direito de voto para conquistar mudanças importantes. Sua posição, de propor uma educação e mobilização em massa do eleitorado negro, era praticamente idêntica á do SNCC, e seria mais tarde adotada pelo Partido dos Panteras Negras em Oakland nos anos 1970. Mas fora dos Estados Unidos, apesar de seu respeito por Nkrumah, ele não via a política eleitoral e a mudança social gradual como abordagem viável para transformação de sociedades pós-coloniais. Apoiava a violência revolucionária contra o regime do apartheid na África do Sul, e as guerra de guerrilha contra o regime neocolonial no Congo e nas colônias portuguesas de Guiné-Bissau, Angola, Moçambique. Nelson Mandela, que em 1961 fundou o Congresso Nacional Africano, era herói de Malcolm por sua identificação com os ataques guerrilheiros contra a África do Sul branca. Embora hoje Mandela seja visto como um reconciliador de raças, muito semelhante a King, meio século atrás o futuro presidente da África do Sul tinha opiniões muito parecidas com as de Malcolm sobre a necessidade da luta armada na África. Por isso, a ideia de que havia “dois Malcolms X” — um que defendia a violência quando era membro da Nação, e outro que apoiava a mudança não violenta — é absolutamente errada. Para Malcolm, a autodefesa armada jamais significou violência pela violência.


               Malcolm concebeu uma versão moderna do pan-africanismo, baseada no antirracismo global. A Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001, foi, em muitos sentidos a materialização da visão internacional de Malcolm. Centenas de organizações não governamentais de religião, de justiça social e de direitos civis travaram diálogos transnacionais, examinando o racismo de uma perspectiva verdadeiramente global. Dos 11 500 delegados e observadores, cerca de 3 mil eram americanos, e quase dois terços americanos negros. Malcolm acreditava que a liberdade dos negros nos Estados Unidos dependia de uma estratégia geopolítica internacionalista.


               A dimensão irrealizada da visão racial de Malcolm foi a do nacionalismo negro. Ideologia política surgida antes da Guerra Civil,  o nacionalismo negro baseava-se na crença de que o pluralismo racial  conducente a assimilação era impossível nos Estados Unidos. Tão descrentes eram os nacionalistas na capacidade de os brancos superarem o próprio racismo que chegaram a negociar com grupos terroristas como a Ku Klux Klan, na equivocava suposição de que eram mais honesto em suas atitudes raciais do que os liberais. Mas, á medida que as experiências internacionais Malcolm ganhavam variedade e amplitude, sua visão social se expandia. Ele ficou menos intolerante e mais aberto a coalizões multiétnicas e inter-religiosas. Em seus últimos meses de vida recusava a identificação de “nacionalista negro”, buscando abrigo ideológico nos conceitos racialmente neutros do pan-africanismo e da revolução no Terceiro Mundo. Também passou a rejeitar a violência pela violência, jamais abandonando porém, o ideal de nacionalista de “autodeterminação”, o direito dos países e minorias oprimidas decidirem por sua conta própria seu futuro político. Diante da eleição de Barack Obama, levanta-se agora a questão de saber se os negros têm um destino político separado de seus concidadão brancos. Se a segregação racial legal ficou permanentemente para trás no passado dos Estados Unidos, a visão de Malcolm hoje teria de redefinir num ambiente político que muitos parece “pós-racial”.


              Finalmente, e talvez mais relevante, Malcolm X representou a ponte mais importante entre o povo americano e mais de 1 bilhão de muçulmanos mundo afora. Antes da reforma da lei de imigração em 1965, o mais destacado grupo a identificar-se com o muçulmano americano foi a herética Nação do Islã. Quando se informou melhor sobre o Islã ortodoxo, Malcolm de dispôs a propagar o significado dessa fé para plateias fora de qualquer contexto racial. Mesmo antes de sua morte, Malcolm tornou-se amplamente conhecido e respeitado nas diásporas islâmicas e árabes. Tentou comunicar-se com seitas e organizações islâmicas que refletiam opiniões e princípios teológicos muitos divergentes — os muçulmanos wahabitas na Arábia Saudita, os socialistas nasseristas no Egito, os sufis africanos no Senegal, a Irmandade Muçulmana no Líbano, a Organização para a Libertação da Palestina. Evitava discussões que pudessem muçulmanos contra  muçulmanos; enfatizava a capacidade do Islã para transformar o crente, levando-o do ódio e da intolerância para o amor. Sua própria e notável história pessoal pessoa personificou essa reinvenção.


               E o que dizer do futuro de Malcolm depois de sua morte? Assim como a cultura do hip hop foi decisiva para promover o segundo renascimento nos anos 1990 parece provável que o Islã influenciará seu legado futuro.

               O processo de reinvenção jihadista começou com revolução iraniana. O governo do aiatolá Khomeini foi o primeiro a imprimir um selo postal com a imagem de Malcolm, lançado em 1984 para promover o Dia Universal da Luta contra a Discriminação Racial. Menos de duas décadas depois, sua influência foi descoberta nas cavernas das montanhas do Afeganistão, no radicalismo do convertido islâmico e talibanista Jonh Walker Lindh. Branco americano de classe média alta do rico condado de Marin, na Califórnia, Lindh foi apresentado a Malcolm quando a mãe o levou para ver o filme de Spike Lee. Depois de ler a Autobiografia, o fascínio de Lindh evoluiu para ferrenha dedicação. Em outubro de 2001, quando forças americanas invadiram o Afeganistão, Lindh foi capturado entre os combatentes talibãs e agora cumpre pena de vinte anos de prisão. O conselheiro religioso de Lindh, Shakeel Syed, está convencido de que Lindh poderia “ser o novo Malcolm X”.


               A rede terrorista Al-Qaeda também tem consciência suficiente da política racial americana para estabelecer claras distinções entre líderes afro-americanos convencionais e revolucionários negros como Malcolm. Um vídeo da Al-Qaeda divulgado depois da eleição de Barack Obama em novembro de 2008 descrevia o presidente eleito como um “traidor da raça” e “hipócrita” em comparação com Malcolm X. “E em [Barack Obama] e Colin Powell, [Condolezza] Rica e semelhante, as palavras de Malcolm X [ que Alá tenha piedade dele] sobre ‘negros de casa’ se confirmam”, declarou o vice da Al-Qaeda, Al Ayman Al-Zawari. Malcolm foi descrito como uma figura essencial para as tradições políticas dos “honrados negros americanos”. O que há de irônico nisso é que Malcolm certamente condenaria os ataques terroristas do Onze de Setembro de 2001 por representarem a negação dos princípios do Islã. Uma religião baseada na compaixão universal e no respeito aos ensinamentos da Torá e dos Evangelhos, Malcolm saberia, não tem nada em comum com aqueles que empregam o terror como ferramenta política. A jornada de autodefesa de Malcolm e a busca de Deus o conduziram á paz e o afastaram da violência.


               Mas há outro legado que pode ter grande influência na herança deixada por Malcolm: a política do humanismo radical. O primeiro encontro real de James Baldwin com Malcolm ocorreu em 1961, quando foi solicitado para mediar um grupo de discussão o que incluía a Nação do Islã num programa radiofônico. Malcolm fora convidado para debater com um jovem ativista de direitos civis que acabara de voltar de protestos pela dessegregação no sul. Baldwin teve medo de que o célebre agitador fosse arrasar com o jovem manifestante. Baldwin escreveria depois que estava ali “para jogar um salva-vidas sempre que Malcolm parecesse levar o menino para águas profundas demais”. Para surpresa de Baldwin, Malcolm “compreendeu aquele menino e dirigiu-se a ele como se falasse como um irmão mais novo”. Baldwin ficou profundamente comovido. “Jamais esquecerei Malcolm e o menino, um diante do outro, e sua extraordinária gentileza: ele foi uma das pessoas mais gentis que conheci na vida.”


               Um profundo respeito pela humanidade negra e uma profunda crença nela estavam no cerne da fé visionária desse revolucionário. E quando sua visão social se ampliou, passado a incluir pessoas de diferentes nacionalidades e identidades raciais, seu gentil humanismo e antirracismo poderiam ter se tornado plataforma para uma nova espécie de política étnica radical e global. Em vez do feroz símbolo de violência étnica e ódio religioso que a Al-Qaeda quis projetar nele, Malcolm X deveria ser visto como um representante da esperança e da dignidade humana. Pelo menos para os afro-americanos, ele já personifica essas mais elevadas aspirações.








Kassan 21/02/2014 


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