A Participação do Homem Negro no Vietnã


Entre os testes mais críticos enfrentados por Johnson estão a guerra do Vietnã e a revolução negra interna. O fato de que cérebros do Pentágono tenham decidido enviar dezesseis por cento de soldados negros para o Vietnã é uma indicação de que há um relacionamento estrutural entre estas duas áreas de conflito. E a escandalosa rejeição inicial do Legislativo da Geórgia em dar posse ao representante eleito Julian Bond, porque ele denunciara o papel de agressor dos Estados Unidos no Vietnã, mostra, também, a muito íntima relação entre o modo como seres humanos estão sendo tratados no Vietnã e o tratamento que estão recebendo aqui nos Estados Unidos.Vivemos hoje num sistema que está nas últimas etapas de seu prolongado processo de colapso em escala mundial. Os dirigentes deste sistema têm as mãos muito ocupadas. A injustiça está sendo desafiada em cada esquina e em cada nível. Os governantes sentiram que a grande ameaça são os movimentos de libertação nacional em todo o mundo, e particularmente na Ásia, África e América Latina. Para que possam deflagrar guerras de repressão contra estes movimentos de libertação nacional no exterior, eles precisam ter paz, estabilidade e unanimidade de propósitos internamente. Mas, domesticamente, há um Cavalo de Tróia, um Cavalo de Tróia negro que já despertou para sua condição e agora luta para se levantar. Também ele exige a liberdade.

Qual é o propósito da atenção que os governantes estão agora focalizando sobre o Cavalo de Tróia? Advirá ele de um amor recém-descoberto pelo cavalo, ou será que os governantes necessitam que o cavalo fique quieto, impassivo, e não cause problemas ou embaraços enquanto travam a guerra no Vietnã? Na verdade, os governantes têm necessidade do poder do cavalo nos campos de batalha. O que o homem negro na América deve manter constantemente na lembrança, é que a doutrina da supremacia branca, que é uma parte da ideologia do sistema mundial que a estrutura do poder está tentando preservar, deixa ao homem negro a maior porção de sofrimento e ódio que a supremacia branca serviu de bandeja à população não-branca do mundo durante centenas de anos. O homem branco orientado pela supremacia branca sente menos remorso a respeito do massacre de “crioulos” do que sente em relação ao esmagamento de qualquer outra raça sobre a terra. Este fato histórico incontestável, tomado aos persistentes esforços atuais dos Estados Unidos para cortejar a União Soviética visando a uma aliança contra a China, significa PERIGO para todos os povos do mundo que têm sido vítimas da supremacia branca. Se este namoro for bem sucedido, se os Estados Unidos finalmente forem capazes de fazer par com a Rússia, ou se os Estados Unidos puderem continuar amedrontando a União Soviética para que esta renegue seus compromissos com a solidariedade socialista internacional (que os soviéticos estão sempre apregoando, embora ainda permitindo que os agressores imperialistas continuem a bombardear diariamente a República Democrática do Vietnã do Norte), e se os Estados Unidos forem capazes de lançar sua fúria e poder armado contra o crescente gigante não-branco que é a China (e este é o verdadeiro alvo da política norte-americana no Vietnã e o objetivo da estratégia norte-americana em todo o mundo), caso os Estados Unidos saiam vitoriosos nestas frentes, então será a vez do homem negro novamente encarar o linchador e o incendiário do mundo: e de enfrentá-lo sozinho.

Os americanos negros são muito facilmente iludidos por uns poucos sorrisos e gestos amigos, pela aprovação de umas poucas leis de aparência liberal que são deixadas nos livros, mofando sem serem postas em vigor, e pelos discursos insípidos de um Presidente que é um mestre consumado em tagarelar com os milhares de cantos da sua boca. Tal poesia não garante o futuro seguro da população negra da América. A população negra deve ter uma garantia, deve ter certeza, precisa estar convencida, afastando todas as dúvidas, de que o reinado do terror terminou e que não foi apenas suspenso, e que o futuro de seu povo está garantido. E a única maneira pela qual ela pode assegurá-lo é conquistando a unidade e a comunicação organizada com seus irmãos e aliados em todo o mundo, em bases internacionais. Ela precisa ter este poder. Não existe outra maneira. Qualquer outra coisa é a traição ao futuro de seu povo. O que está envolvido aqui, o que está sendo decidido neste exato momento, é a forma do poder no mundo de amanhã.

O problema racial americano não pode mais ser discutido ou resolvido separadamente. O relacionamento entre o genocídio no Vietnã e a atitude do homem branco em relação aos americanos negros é um relacionamento direto. Tão logo o homem branco resolva seu problema no Oriente, imediatamente voltará de novo sua fúria contra o povo negro da América, seu antigo saco de pancada. A população negra tem sido enganada repetidas vezes, vendida a cada instante pelos falsos líderes. Após a Guerra Civil, a América passou por um período similar ao que estamos vivendo agora. O problema dos negros recebeu ampla atenção. Todos sabiam que o homem negro tivera a justiça negada. Ninguém duvidava de que era tempo para mudanças e que o homem negro devia ser feito um cidadão de primeira classe. Mas a Reconstrução acabou. Os negros que foram elevados a altas posições foram bruscamente chutados para as ruas e aglomerados como gado juntamente com as massas de negros nos guetos e cinturões negros. O linchador e o incendiário receberam licença para matar negros à vontade. Os americanos brancos encontraram um novo nível para o qual expulsaram os negros. E com o auxílio de instrumentos tais como Booker T. Washington, a doutrina da segregação foi pregada firmemente nas costas dos negros. Foram necessários cem anos para avançar com dificuldade daquele nível de esfriamento para a miserável posição que os americanos negros ora ocupam. O tempo está passando. A oportunidade histórica que os acontecimentos mundiais agora apresentam aos americanos negros está se escoando a cada tique-taque do relógio.

Este é o último ato do show. Estamos vivendo numa época em que povos do mundo fazem a tentativa final em direção à liberdade plena e completa. Nunca antes esta condição prevaleceu na História. Antes, existiram sempre redutos mais ou menos articulados e conscientes, porções de classes, etc., mas a época atual é de consciência de massas, quando o mais insignificante homem na rua está em rebelião contra o sistema que lhe negou a vida e que, como ele já compreendeu, é a força que lhe retira a dignidade e o auto-respeito. Contudo, ele está sendo informado de que levará tempo para que se dê início aos programas, para aprovar a legislação, para educar a população branca e aceitar a idéia de que a população negra deseja e merece liberdade. Mas é fisicamente impossível avançar tão rápido quanto o homem negro gostaria. Os homens negros são extremamente sérios quando dizem LIBERDADE AGORA. Mesmo que o homem branco quisesse apagar de vez todos os traços do mal na calada da noite, não seria capaz de fazê-lo porque o sistema econômico e político não o permitirá. Toda a conversa a respeito de ir muito rápido é traiçoeira para o futuro do homem negro.

O que o homem branco deve ser levado a compreender é que o homem negro na América de hoje está totalmente ciente de sua posição e não pretende ser ludibriado novamente com mais cem anos de privação de liberdade. Nem por único momento ou por qualquer preço o homem negro atualmente em rebelião na América estará disposto a concordar com qualquer coisa que não seja a sua completa participação proporcional na soberania da América. O homem negro já chegou à compreensão de que, para ser livre, é necessário lançar sua vida – tudo enfim – na batalha, porque os opressores se recusam a compreender que, agora, lhes é impossível aparecer com outra trama para esmagar a revolução negra. O negro não pode se permitir uma nova tentativa. Não pode se permitir cruzar os braços. Precisa pôr fim a todo o show AGORA e assumir firmemente o controle de suas questões, porque, se não o fizer neste momento, se não conseguir agarrar fortemente as rédeas desta oportunidade histórica, talvez não haja amanhã para ele.

O interesse do homem negro está em ser um Vietnã independente e livre, um Vietnã forte que não seja o fantoche da supremacia branca internacional. Se as nações da Ásia, África e América Latina forem fortes e livres, o homem negro na América estará seguro e livre para viver com dignidade e auto-respeito. É um fato cristalino que enquanto as nações da África, Ásia e América Latina eram algemadas pela servidão colonial, o negro americano era mantido firmemente no torno da opressão e impedido de soltar um gemido de protesto de qualquer efeito. Mas quando estas nações começaram a lutar pela sua liberdade, foi então que os americanos negros fora capazes de aproveitar sua chance; foi, então, que o homem branco dispôs-se a pequenas concessões – forçado pela pura necessidade. A única salvação duradoura para o americano negro é fazer todo o possível no sentido de que as nações africanas, asiáticas e latino-americanas venham a ser livres e independentes.

A este respeito, os negros americanos têm um importante papel a desempenhar. Constituem um Cavalo de Tróia negro dentro da América branca e representam uma parcela de mais de vinte e três milhões de homens. É uma grande força. Mas também serão muito fracos se estiverem se estiverem desorganizados e divididos por disputas internas. Neste momento, está deploravelmente desorganizado; a necessidade urgente, pois, é de união e organização. A unidade está nos lábios dos negros. Hoje estamos à beira de mudanças radicais nesta paisagem miserável de quase mil pequenos grupos e organizações fragmentadas e ineficientes, incapazes de trabalhar juntas por uma causa comum. A necessidade de uma organização que dê uma voz ao interesse comum do homem negro é sentida em cada osso e músculo da América negra.Ontem, após repudiar firmemente o racismo negro e romper seus laços com a organização dos muçulmanos negros, o falecido Malcolm X lançou uma campanha para transformar a luta do homem negro americano, de um tímido apelo em prol dos “direitos civis”, numa exigência universal pelos direitos humanos, com o supremo objetivo de pôr à prova o Governo dos Estados Unidos nas Nações Unidas. Isto e a idéia da Organização da Unidade Afro-americana foram o legado de Malcolm ao seu povo. E a idéia não caiu em terra árida. Já os líderes negros americanos reuniram-se com os embaixadores da África negra durante um almoço na sede das Nações Unidas. A ninguém escapou o significado deste momentoso acontecimento. O fato de terem sido o caso de Julian Bond, sua denúncia de agressão norte-americana no Vietnã e a ação de elementos racistas no legislativo da Geórgia que reuniram os líderes da América e da África negra, é profético de um reconhecimento ainda mais claro, pelos homens negros, de que seus interesses também estão ameaçados pela guerra de repressão norte-americana no Vietnã. Esta harmonização de causas e questões está destinada a dar consecução a outro sonho que o assassinato de Malcolm impediu-lhe de realizar – a Organização da Unidade Afro-americana, ou talvez uma organização similar sob nome diferente. Os americanos negros sabem, agora, que precisam se organizar para alcançar o poder de mudar as políticas externa e interna do governo norte-americano. Precisam fazer com que suas vozes sejam ouvidas a respeito destas questões. Precisam fazer com que o mundo saiba de que lado estão.Não é por casualidade que o governo norte-americano está enviando aqueles soldados negros para o Vietnã. Algumas pessoas pensam que o objetivo da América, ao enviar dezesseis por cento de soldados negros para o Vietnã, é destruir a nata da juventude negra. Mas há um outro resultado importante. Transformando seus soldados negros em carniceiros do povo vietnamita, a América está propagando o ódio contra a raça negra em toda a Ásia. Mesmo os africanos negros acham difícil não odiar os americanos negros, por serem estes tão estúpidos que se deixam manipular para matar outro povo que luta pela liberdade. Os americanos negros são considerados os maiores tolos do mundo por irem para outro país lutar por algo que eles próprios não têm.

Os racistas brancos ficam perturbados com o fato de que povos do mundo inteiro gostam dos americanos negros, mas acha impossível dedicar semelhante afeição calorosa aos americanos brancos. O racista branco sabe que ele é o Americano Mau e quer que o americano negro seja também Mau aos olhos do mundo: a miséria gosta de companhia! Quando pessoas em todo o mundo gritam: “Yankee, Go Home”, visam o homem branco e não o homem negro, que é um escravo recém-libertado. O homem branco está tentando deliberadamente tentando fazer os povos do mundo se virarem contra os americanos negros, porque sabe que se aproxima o dia em que os americanos negros necessitarão da ajuda e do apoio de seus irmãos, amigos e aliados naturais espalhados por todo o mundo. Se através da estupidez, ou seguindo líderes escolhidos a dedo, que são agentes servis da estrutura do poder, os americanos negros permitirem o êxito desta estratégia contra eles, então, quando a hora chegar e precisarem de ajuda, este auxílio e apoio do mundo não existirá. Todo o amor, respeito e boa-vontade internacional de que os americanos negros atualmente gozam no mundo inteiro terão desaparecido. Eles mesmos terão soterrado tudo isso na lama dos arrozais e pântanos do Vietnã.

Trecho extraído do livro Alma no Exílio.
Eldridge Cleaver.

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