Socialismo ou neocolonialismo
As lutas de emancipação dos povos africanos
e a actualidade do legado de Amílcar Cabral.
Por Carlos Lopes Pereira
1. Quando a tua palhota arde...
“Não vamos utilizar esta tribuna para dizer mal do imperialismo. Diz um ditado africano muito corrente nas nossas terras, onde o fogo é ainda um instrumento importante e um amigo traiçoeiro (...), que 'quando a tua palhota arde, de nada serve tocar o tam-tam '. À dimensão tricontinental, isso quer dizer que não é gritando nem atirando palavras feias faladas ou escritas contra o imperialismo, qualquer que seja a sua forma, é pegar em armas e lutar. É o que estamos a fazer e faremos até à liquidação total da dominação estrangeira nas nossas pátrias africanas”.
Estas palavras, proferidas por Amílcar Cabral em Havana, em 1966, na I Conferência de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina, balizam este texto. Pretende-se, por um lado, fazer uma releitura actualizada do pensamento de Cabral, cujo 80.º aniversário do nascimento se assinalou por estes dias na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, países que conquistaram a independência há três décadas, fruto da luta de libertação nacional por ele pensada, organizada e conduzida. E, por outro lado, reflectir sobre as perspectivas das lutas anti-imperialistas que no início do século XXI se travam em África.
Nesta era em que os povos enfrentam “a ofensiva global do capitalismo para se impor em todo o Mundo como sistema único e final” [1] , é interessante confrontar a realidade dos nossos dias com o legado teórico do fundador do Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), assassinado há três décadas por agentes do colonialismo português. E, à luz dos seus postulados, colocar velhas questões para as quais procuramos novas respostas: qual a situação dos povos africanos, conquistadas as independências formais, face à dominação imperialista? Que lutas se travam hoje? Estão ainda longe os sonhos do congolês Patrice Lumumba, do ganês Kwame Nkrumah, do guineense-caboverdeano Amílcar Cabral, do angolano Agostinho Neto, do moçambicano Samora Machel, do sul-africano Nelson Mandela, heróis da Humanidade, estão ainda longe os sonhos de uma África independente, unida, desenvolvida, próspera, sem exploração do homem pelo homem?
2. “A luta é sempre uma luta armada”
Em termos históricos, os últimos 40 ou 50 anos são um período de grandes lutas e vitórias para os africanos, de enormes progressos na emancipação dos povos do continente.
Depois da Segunda Guerra Mundial, durante a qual africanos lutaram nas fileiras dos exércitos aliados contra o nazismo, os povos colonizados foram conquistando a independência, em processos políticos diferenciados, alguns através de lutas armadas de libertação nacional, como os da Argélia, da Guiné-Bissau, de Angola ou de Moçambique, existindo hoje meia centena de estados africanos independentes.
Segundo Amílcar Cabral, o exame da história dos povos africanos demonstra que estes nunca deixaram de lutar com todas as suas forças contra a dominação estrangeira. A luta pela liberdade e contra a dominação estrangeira é um factor concreto e permanente da tradição histórica dos povos do continente africano e foi realizada sob diversas formas, confirmando a inalienável vocação destes povos para determinarem o seu próprio destino – livres e independentes de pressões estrangeiras. O direito à autodeterminação e à independência traduz essa combatividade tradicional e sempre manifesta dos povos africanos contra a dominação estrangeira.
Na verdade, a dominação, a pilhagem e a exploração dos africanos e de África pelas potências colonialistas só tomaram grandes proporções quando os países imperialistas, sob a direcção e a inspiração das potências europeias, puseram em prática a formação de uma frente imperialista mundial contra os povos africanos. A Conferência de Berlim, em 1885, foi uma etapa decisiva na sujeição de África ao imperialismo. Apesar da superioridade técnica dos países imperialistas, baseada, de resto, no monopólio europeu dos valores criados pelas civilizações milenárias de África e da Ásia, a dominação estrangeira nunca foi total. “Os povos africanos nunca deixaram de manifestar o seu ódio pela dominação estrangeira. É esta a gloriosa tradição dos povos de África no que respeita à dominação estrangeira. A luta de libertação dos povos africanos está, pois, na base desta tradição, na base deste ódio activo para com a dominação estrangeira, que adquiriu novas formas nesta fase decisiva da evolução do Mundo” [2] .
Entre estas modernas guerras dos africanos pela independência – é preciso não esquecer que a África pré-colonial contava com muitas centenas de estados independentes e que o colonialismo reagrupou-os, concentrando-os numa meia centena de colónias, “empenhadas agora numa tarefa de se transformarem noutras tantas nações” [3] – figura a luta armada na Guiné-Bissau, entre 1963 e 1974, sob a direcção do PAIGC fundado e dirigido por Amílcar Cabral, entretanto desaparecido em Janeiro de 1973, assassinado em Conakry por traidores guineenses a soldo do colonialismo português.
O estudo da gesta emancipadora dos povos guineense e caboverdeano é tanto mais interessante quanto se sabe que a República da Guiné-Bissau, forjada e nascida numa exemplar luta armada de libertação nacional, caiu mais tarde, ao longo destas três décadas de independência, numa situação de guerras fratricidas, de golpes de estado, de caos económico e social, de quase dissolução do Estado ainda por consolidar.
Desde logo, uma questão: como foi possível num pequeno território (36 mil quilómetros quadrados), a um povo pouco numeroso (800 mil habitantes), dividido por diferentes etnias, derrotar política e militarmente Portugal, apoiado pelos Estados Unidos, pela Grã-Bretanha, pela República Federal da Alemanha, pela França?
Uma das originalidades do PAIGC, criado em Bissau na segunda metade dos anos Cinquenta do século passado, por Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral e outros patriotas guineenses e caboverdeanos, foi enquadrar num único partido/movimento de libertação nacional os objectivos de libertação de duas colónias distintas, ainda que ligadas pela História. (A dialéctica da luta mostraria que esta opção fundamental foi a maior força do movimento e, também, uma das suas fraquezas).
Avançado em relação ao seu tempo, Cabral sintetizou no lema “Unidade e Luta” toda a estratégia da luta – unidade entre os povos da Guiné (“há 10 anos nós éramos fulas, manjacos, mandingas, balantas, pepéis e outros... Somos agora uma nação de guineenses”, afirmará, em 1972, meses antes de morrer), unidade dos caboverdeanos, unidade entre a Guiné e Cabo Verde, unidade dos nacionalistas das colónias portuguesas, unidade dos povos africanos, unidade das forças anti-imperialistas, tudo isso para melhor lutar contra o inimigo comum, o colonialismo, a dominação imperialista e contra as próprias fraquezas. “Unidade e luta significa que para lutar é preciso unidade, mas para ter unidade também é preciso lutar. E isso significa que, mesmo entre nós, lutamos” [4] , precisava.
Depois de uma experiência curta de acções políticas e sindicais, o PAIGC na clandestinidade opta – após o massacre de Pindjiguiti, no porto de Bissau, em que os colonialistas reprimem brutalmente uma greve de marinheiros e trabalhadores portuários –, em 1959, pela via armada. Mais tarde, explicará: “A etapa fundamental dos povos não é um problema de luta armada ou luta desarmada, porque para nós é sempre luta armada. Existem dois tipos de luta armada: a luta armada na qual os povos combatem de mãos vazias, enquanto que os imperialistas ou colonialistas, esses sim armados, matam e assassinam; e a luta armada daqueles que como nós, reconhecendo que não somos seus escravos, empunham armas para responder aos imperialistas”.
Depois de algum tempo de mobilização popular, sobretudo dos camponeses, para a luta, o PAIGC desencadeia acções directas em 1961 e inicia a luta armada em 1963: “Desencadeámos a luta armada no centro do país e adoptamos uma estratégia que podemos chamar de centrífuga, a partir do centro e até à periferia. Foi este o motivo da grande surpresa para os portugueses, que tinham as suas forças situadas nas fronteiras das Repúblicas da Guiné e do Senegal, esperando que invadíssemos o país. Mobilizámo-nos nas povoações, organizámo-nos clandestinamente nas cidades e nos campos, preparámos os nossos quadros, armámos o mínimo de gente que podíamos armar, mais com armamento tradicional do que com armas modernas, e desencadeámos a revolução a partir do centro do nosso país” [5] .
O combate avança, depois, etapa a etapa (a luta é como um fato que tem de servir à medida que se cresce...), em todas as frentes – política, militar, diplomática, da construção de um novo Estado nas áreas libertadas ao domínio colonialista –, e ao mesmo tempo vai sendo forjada uma nova identidade nacional: “Na luta, não disparamos apenas tiros., estamos a forjar uma nação”, repetirá Cabral. Os guerrilheiros guineenses e caboverdeanos transformam-se num exército, as tropas portuguesas são forçadas a acantonar-se nos quartéis nas cidades e vilas, dominam só o ares com os seus caças e helicópteros, até que, em 1973, o PAIGC introduz novas armas – mísseis terra-ar de fabrico soviético – e tem a guerra ganha. A Guiné é, nessa altura, um país parcialmente ocupado por uma potência estrangeira – Portugal – e, depois de eleições nas áreas libertadas, o PAIGC, já sem Cabral, proclama no Boé o nascimento da República da Guiné-Bissau, imediatamente reconhecida pela maior parte da comunidade internacional e admitida nas Nações Unidas.
Momento decisivo desta epopeia de 13 anos (entre 1961, com o início das “acções directas”, e 1974, com a retirada das tropas colonialistas e da administração portuguesa), foi o primeiro congresso do PAIGC, em 1964, em Cassacá, no Sul libertado, reunido a poucos quilómetros do local onde se travava a Batalha do Como, a primeira grande vitória militar da guerrilha sobre o exército colonial. O Congresso de Cassacá reestrutura o partido, cria um exército, as Forças Armadas Revolucionárias do Povo, organiza a vida económica nas áreas libertadas e, sobretudo, combate graves desvios ideológicos que se registam – apenas um ano depois do início da luta armada – entre chefes intermédios da guerrilha. Derrotados e expulsos os colonialistas de certas zonas, houve guerrilheiros que tentaram substituir-se aos colonialistas – explorando e reprimindo o povo, abusando das mulheres, cobrando impostos em géneros... A história do PAIGC descreve estes desvios ideológicos como tendo sido o autoritarismo e militarismo (tentativa de supremacia dos militares sobre o partido), aregulandade (criação de súbditos em torno de chefes), a catchorindade (servilismo e bajulice), a mandjoandade (espírito de clã).
Uma nota, aqui, para reforçar a denúncia das atrocidades cometidas na Guiné-Bissau e nas outras colónias, em especial durante o período da luta armada pela independência. Na verdade, hoje, quando se fala dos crimes das tropas dos Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão, o sistema mediático dominante, não podendo esconder os bombardeamentos sobre populações civis, a utilização de armas de destruição maciça, os assassinatos seleccionados ou não, as torturas, procura apresentá-los com “excepções” e “casos isolados”.
No caso do colonialismo português, tão criminoso como o inglês, o francês ou o belga, de igual modo se tenta fazer esquecer as barbaridades cometidas contra os povos africanos – escravatura, trabalho forçado, espoliação de terras, cobrança forçada de impostos, os massacres, as prisões, as torturas, a humilhação do “estatuto de indigenato”...
Em plena guerra, em 1968, Amílcar Cabral refere essas barbaridades no prefácio para um livro do jornalista e escritor britânico Basil Davidson, um dos primeiros europeus a denunciar o colonialismo português, ainda nos anos Cinquenta, e, mais tarde, em 1960, a organizar em Londres uma acção de divulgação da luta dos nacionalistas africanos. Nesse prefácio, descrevendo o trajecto que fez com Davidson nas áreas libertadas da Guiné, conta: “A Europa, cartesiana e sobredesenvolvida, quando se trata de guerras, exige sempre a mais objectiva objectividade: quer ver os feridos e os cadáveres. E lá vieram os aviões, bombardeando-nos a esmo, quotidianamente. E vimos juntos as mesmas aldeias arruinadas, as mesmas populações em fuga perante as bombas, os mesmos mortos queimados pelo napalm , aquele mesmo guerrilheiro escaldado ao terceiro grau, mas mesmo assim vivo, as mesmas bombas feitas nos Estados Unidos da América, lançadas por aviões feitos na Alemanha Ocidental, equipados com rádios feitos na Grã-Bretanha, e as mesmas granadas lançadas de canhoneiras e fragatas feitas em França” [6] . No mesmo texto, Cabral denuncia o apoio da OTAN ao colonial-fascismo português: “Toda a gente sabe que Portugal não constrói aviões, nem mesmo os de brinquedo para as crianças. A nossa situação – esta agressão portuguesa contra o nosso povo – envolve também os aliados de Portugal, incluindo a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. E também aqui a nossa luta nos traz outra vantagem: ensina-nos a conhecer os amigos e inimigos do nosso povo, da África”.
3. A revolução não se exporta
Amílcar Cabral defendia que cada povo dominado devia lutar pela libertação da sua própria terra. “Por maior que seja a similitude dos casos em presença e a identificação dos nosso inimigos, infelizmente ou felizmente, a libertação nacional e a revolução social não são mercadorias de exportação. São (e sê-lo-ão cada dia mais) um produto de elaboração local – nacional – mais ou menos influenciável pela acção dos factores externos (favoráveis e desfavoráveis), mas determinado e condicionado essencialmente pela realidade histórica de cada povo, e apenas assegurado pela vitória ou a resolução adequada das contradições internas de vária ordem que caracterizam essa realidade”, afirmou ele em Havana, em princípios de 1966 [7] .
Anos mais tarde, em 1972, na sua última visita aos Estados Unidos, falando com representantes de organizações de negros americanos, explicava: “Nós baseamos a nossa luta nas realidades concretas do nosso país. Apreciamos as experiências e as conquistas de outros povos e estudamo-las. Mas a revolução ou a luta de libertação nacional é como um vestido que deve ser moldado para cada corpo. Evidentemente, há certas leis gerais ou universais, mesmo leis científicas para quaisquer condições, mas a libertação nacional tem de ser levada a cabo de acordo com as condições específicas de cada país. Isto é importante. As condições específicas que devem ser consideradas incluem as condições económicas, culturais, sociais, políticas e mesmo geográficas. Os manuais de guerrilha ensinaram-nos um dia que sem montanhas não se pode fazer guerra de guerrilhas. Mas no meu país não há montanhas, apenas o povo”. E revelava, com bom humor: “No campo económico, nós cometemos um erro. Começámos a ensinar os nossos homens a fazer sabotagens em caminhos de ferro. Quando eles regressaram da preparação militar, lembrámo-nos que não havia caminhos de ferro no nosso país. Os portugueses construíram-nos em Moçambique e Angola, mas não no nosso país” [8] ...
A verdade é que, desde 1966, precisamente na sequência da deslocação nesse ano de Amílcar Cabral a Cuba, havia assessores militares e médicos cubanos a ajudar os guerrilheiros do PAIGC na Guiné-Bissau, numa prova concreta de solidariedade internacionalista que mais tarde se repetiria em outras partes do Mundo mas que, nessa altura, foi mantida em segredo – até ser ferido e capturado na Guiné, pelas forças colonialistas, um combatente cubano.
Oscar Oramas, que foi embaixador de Cuba na República da Guiné (Conakry), conta que os contactos entre o PAIGC e Cuba tiveram início no começo da década de Sessenta mas que as relações só se intensificam nos princípios de 1965, quando Ernesto Che Guevara se encontra com Cabral em Conakry no decorrer de uma prolongada viagem que efectua por países africanos, “com o objectivo de fazer contactos com os dirigentes dos principais movimentos de libertação nacional e com os governos que dão o seu apoio à luta pela independência africana, como os da Argélia, Tanzânia, Egipto e Gana” [9] .
No seguimento da conversa entre Guevara e Cabral (segundo Oramas, Che contará mais tarde a companheiros cubanos “que Amílcar era o dirigente africano de maior talento e o que mais o tinha impressionado” no seu périplo por África), Cuba envia em Abril de 1965, no navio “Uvero”, saído de Matanzas, um primeiro carregamento de “alimentos, medicamentos e utensílios médicos, uniformes, utensílios agrícolas e armas” para o PAIGC e para outros movimentos revolucionários africanos. Nesse navio viaja o primeiro grupo de médicos e assessores militares que “apoiariam o governo de Massemba Dembat, na República do Congo, a Frente de Libertação de Moçambique e o Conselho Supremo da Revolução, no Congo (Leopoldeville)”. Neste último país já se encontrava Che, à frente de um outro grupo de combatentes cubanos.
Entretanto, foi intensificada em Cuba a preparação de militares, “quase na sua totalidade de raça negra, que voluntariamente se oferecem para apoiar os movimentos de libertação nacional africanos que os solicitem” e, em finais de 1965/começos de 1966, quando Amílcar Cabral visita pela primeira vez Cuba, tem vários encontros com Fidel Castro e outros altos dirigentes da Revolução Cubana.
Uma semana depois de terminada a 1.ª Conferência de Solidariedade com os Povos de África, Ásia e América Latina, a célebre Conferência Tricontinental, em Havana, entre 9 e 12 de Janeiro de 1966, “uma pequena delegação militar” cubana vai a Conakry para conhecer nas áreas libertadas a luta do PAIGC e, em Maio, chegam, por via aérea e no navio “Lídia Doce”, 27 assessores militares e médicos para colaborarem na luta.
Cabral pretende que “a presença cubana deve manter-se no mais estrito sigilo a fim de evitar que isso conduza à internacionalização da luta” e assessores e médicos são colocados nas diversas frentes da guerra, estes últimos apoiando importantes acções militares. Os instrutores ajudam também a testar e utilizar novos armamentos fornecidos pela União Soviética, como o lança-roquetes Grap, os canhões sem recuo de 82 mm e os roquetes portáteis “Estrella 2” “que só tinham sido utilizados pelos soviéticos em manobras internas” mas que, nos campos de combate da Guiné, põem termo à supremacia aérea dos colonialistas portugueses, marcando uma viragem decisiva da guerra a favor dos patriotas guineenses e caboverdeanos.
Também no quadro das relações entre o PAIGC e Cuba são treinados, na ilha, quadros militares caboverdeanos – dirigidos por Pedro Pires, actual presidente da República de Cabo Verde –, que se preparam inclusivamente para um desembarque marítimo no arquipélago, o qual, adiado sucessivamente por razões logísticas e outras, nunca chegará a ter lugar.
Cabral, para quem “Cuba é uma ilha africana perdida no Mar do Caribe”, tinha grande apreço pela solidariedade internacionalista cubana: “O combatente cubano ou o médico que leva a sua ciência aos rincões mais afastados do território da Guiné-Bissau, sem se importar com as condições materiais, dá uma lição de moral e é, além disso, um facto que o meu povo jamais esquecerá, pois que nas condições mais adversas, sem a assepsia necessária, porque não havia hospitais, se praticou uma medicina de campanha com amor, com dedicação, com consciência humana e revolucionária e isto é uma mensagem para os povos”.
Mas é talvez a opinião de Amílcar sobre Fidel, registada por Oramas, que traduz melhor o pensamento do líder do PAIGC sobre a Revolução Cubana e sua importância para outros povos em luta: “Fidel é sem dúvida um dos maiores revolucionários que a história nos deu no presente século; um criador dentro do marxismo, que aplicou enriquecedoramente o marxismo-leninismo às condições concretas de Cuba, o que quer dizer que o fez dentro de um país subdesenvolvido e essa particularidade tem uma importância muito grande, porque chegou a hora do marxismo ser também o guia para a acção dos povos subdesenvolvidos, não só com o objectivo de alcançarem a independência política, mas também o de assegurarem a construção económica pela única via que temos para resolver os problemas do subdesenvolvimento: o socialismo”.
4. A arma da teoria
Amílcar Cabral considerava que se é verdade que uma revolução pode falhar, mesmo que seja nutrida por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém praticou vitoriosamente uma revolução sem teoria revolucionária.
Estudioso dos clássicos do marxismo, leu também Frantz Fanon, Mao Tsé-Tung e Giap, entre outros, conversou longamente com Guevara e Fidel, esteve na Argélia, na China, na União Soviética, no Vietname, visitou dezenas de países africanos (viveu na Guiné-Conackry de Sékou Touré, conheceu o Gana de Nkrumah), foi recebido em países socialistas e países ocidentais, participou em congressos e reuniões na União Soviética, na Suécia ou nos Estados Unidos, trabalhou de perto com camaradas angolanos, moçambicanos e santomenses em luta e, conhecedor profundo da realidade da Guiné e de Cabo Verde, fecundou a sua prática com a teoria, ao mesmo tempo que elaborava teses originais baseadas na realidade concreta da luta que dirigiu e na experiência adquirida de dirigente político, de líder guerrilheiro, de hábil diplomata...
O angolano Mário Pinto de Andrade, companheiro de Cabral na juventude, em Portugal, e nos primeiros tempos da luta comum no exterior (Conakry, Rabat, Argel, Paris, etc.), no quadro da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) – foi um dos primeiros dirigentes do MPLA e, depois das independências, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, um dos principais divulgadores dos escritos do líder do PAIGC –, chamou a atenção para a originalidade da contribuição teórica que Amílcar Cabral trouxe à praxis revolucionária nos países de dominação colonial e neocolonial e apontou “os quatro conceitos operatórios nos quais se estrutura o mais penetrante discurso sobre a libertação nacional: o conceito de domínio imperialista que assume duas formas gerais (a do domínio directo, ou colonialismo clássico, e a do domínio indirecto, ou neocolonialismo); o conceito de história e a força motora da história (o nível das forças produtivas é o elemento determinante e essencial do conteúdo e da forma de luta de classe); a pequena burguesia como alavanca social e ao mesmo tempo fatalidade específica dos movimentos de libertação nacional; enfim, a luta de libertação nacional entendida simultaneamente com facto cultural e factor de cultura” [10] .
Para Cabral, o imperialismo pode ser definido como a expressão mundial da procura gananciosa e da obtenção de cada vez maiores mais-valias pelo capital monopolista e financeiro, acumulado em duas regiões do mundo: primeiro na Europa e, mais tarde, na América do Norte. E, se queremos situar o facto imperialista na trajectória geral da evolução deste factor transcendente que modificou a face do mundo – o capital e os processos da sua acumulação – “poderíamos dizer que o imperialismo é a pirataria transplantada dos mares para a terra firme, reorganizada, consolidada e adaptada ao objectivo da espoliação dos recursos materiais e humanos dos nossos povos”.
Na análise aprofundada que fez do fenómeno imperialista, e a pensar sobretudo em África, distinguiu a situação colonial e a neocolonial. O caso colonial (em que a nação classe se bate contra as forças de repressão da burguesia do país colonizador) pode conduzir, pelo menos aparentemente, a uma solução nacionalista (revolução nacional): – a nação conquista a sua independência e adopta, em hipótese, a estrutura económica que bem lhe apetece. O caso neocolonial (em que as classes trabalhadoras e os seus aliados se batem simultaneamente contra a burguesia imperialista e a classe dirigente nativa) “não é resolvido através de uma solução nacionalista, exige a destruição da estrutura capitalista implantada pelo imperialismo no solo nacional e postula, justamente, uma solução socialista” [11] .
O direito à história dos povos oprimidos e a luta de libertação nacional como acto de cultura foram outros temas teorizados por Cabral: “Quanto a nós, o fundamento da libertação nacional reside no direito inalienável que tem qualquer povo, sejam quais forem as fórmulas adoptadas ao nível do direito internacional, de ter a sua própria história. O objectivo da libertação nacional é, portanto, a reconquista desse direito, usurpado pelo domínio imperialista, ou seja: a libertação do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Há assim libertação nacional quando, e apenas quando, as forças produtivas nacionais são totalmente libertadas de qualquer espécie de domínio estrangeiro. A libertação das forças produtivas e, consequentemente, a faculdade de determinar livremente o modo de produção mais adequado à evolução do povo libertado, abre necessariamente perspectivas novas ao processo cultural da sociedade em questão, conferindo-lhe toda a sua capacidade de criar o progresso.
Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria cultura, que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras. Vemos assim que, se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é, necessariamente, um acto de cultura. Com base no que acaba de ser dito, podemos considerar o movimento de libertação como a expressão política organizada da cultura do povo em luta” [12] .
Da análise da estrutura social da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, Cabral concluiu que, na ausência de uma classe operária desenvolvida, a um sector da pequena burguesia, o sector revolucionário, cabia o papel histórico de conduzir a luta pela independência nacional. É talvez a sua mais polémica tese, propondo à pequena burguesia africana um de dois caminhos – ou trair a revolução ou “suicidar-se como classe”: “Para manter o poder que a libertação nacional põe nas suas mãos, a pequena burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento, (...) transformar-se em pseudo burguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capital imperialista. Ora isso corresponde à situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objectivos da libertação nacional”. Em alternativa, a pequena burguesia pode “reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento e as solicitações naturais da sua mentalidade de classe, identificar-se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Isso significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence”.
Na análise social que faz da Guiné, Cabral diverge, por exemplo, de Fanon ou de Mao Tsé-Tung, em relação ao papel do campesinato face à luta de libertação nacional. Não são os camponeses que dirigem a luta, mas são quantitativamente a sua força mais importante: “O nosso camponês não sabe ler nem escrever e quase não tem relações com as forças coloniais, excepto o pagamento dos impostos, que, mesmo assim, não paga directamente; a classe operária não existe como classe bem definida, trata-se apenas de um embrião em via de desenvolvimento; finalmente, não há entre nós uma burguesia economicamente válida, porque o imperialismo não permitiu que se formasse. Formou-se, no entanto, ao serviço do próprio colonialismo, uma camada social que é hoje a única capaz de dirigir e utilizar os instrumentos de que se servia o Estado colonial contra o nosso povo: a pequena burguesia africana. No preciso momento em que esta classe, depois da libertação nacional, se apoderar do poder, podemos considerar que regressamos à história; nessa altura, vemos manifestar-se de novo as contradições internas da nossa situação económica e social, condicionadas desta vez, é certo, por diversos factores internos, mas também petos do exterior. Devemos ter em consideração todos estes condicionamentos no momento em que a nossa pequena burguesia tomar o poder – ignoro em nome de quem, mas o facto é que o tomará. Que atitude adoptar então?”
Noutro texto, explica que a questão de saber se o campesinato representa ou não a principal força revolucionária é de importância capital. E, no que diz respeito à Guiné, responde negativamente: “Pode assim parecer surpreendente que baseemos no campesinato a totalidade dos esforços da nossa luta armada. Representando todo o país, controlando e produzindo as suas riquezas, é fisicamente muito forte; no entanto, sabemos por experiência quanto nos custou incitá-lo à luta. Na China, por exemplo, a situação do campesinato era fundamentalmente diferente; basta, para nos convencermos, recordar todas as revoltas em cuja origem esteve esse campesinato. Na Guiné, à parte certas zonas e certos grupos que, desde o início, nos acolheram favoravelmente, tivemos, ao contrário dos comunistas chineses, de conquistar o seu apoio por meio de esforços tenazes”.
5. “Não lutamos por uma bandeira e por um hino”
A natureza do Estado saído da luta de libertação nacional era uma das questões teóricas que mais preocupava Amílcar Cabral, assassinado pelo colonialismo precisamente quando preparava a proclamação da República da Guiné-Bissau nas áreas libertadas – o que veio a acontecer meses depois do seu desaparecimento.
“Alguns estados africanos independentes conservaram as estruturas do Estado colonial. Em alguns países, apenas se substituiu o homem branco pelo homem negro, mas para o povo tudo ficou na mesma. (...) A natureza do Estado que vamos criar no nosso país uma questão muito boa, porque é uma questão fundamental. (...) É o problema mais importante do movimento de libertação. O problema da natureza do Estado criado depois da independência é talvez o segredo do falhanço das independências africanas”.
Sobre o Estado depois da independência, na Guiné-Bissau, Cabral entendia que “todas as decisões estruturais têm de ser baseadas nas necessidades e na condição do campesinato, que constitui a grande maioria do nosso povo. Sendo assim, a nova administração será totalmente desprovida daquelas cadeias de comando familiares na época colonial – governadores de província, etc. Não desejamos copiar quaisquer estruturas desse tipo. Queremos, acima de tudo, descentralizar o mais que nos for possível. É essa uma das razões que nos levam a pensar que Bissau não continuará a ser a capital, no sentido administrativo. Na realidade, somos contra a ideia de uma capital. Por que é que os ministérios não hão-de estar dispersos pelo país? Ao fim e ao cabo, o nosso país é um país pequeno, dispõe de estradas razoáveis, pelo menos nas áreas centrais. Para que é que nos havemos de sobrecarregar com todo esse peso morto de palácios presidenciais, grande concentração de ministérios, tudo sinais evidentes de uma elite emergente que em breve se pode tornar um grupo privilegiado?” [13] .
No quadro da luta comum com outras organizações das colónias portuguesas, Cabral definiu claramente os objectivos da luta, para além da conquista da independência: “Nós, da CONCP, comprometemo-nos com os nossos povos, mas não lutamos simplesmente para pôr uma bandeira no nosso país e para ter um hino. Nós, da CONCP, queremos que nos nossos países martirizados durante séculos, humilhados, insultados, que nos nossos países nunca possa reinar o insulto, e que nunca mais os nossos povos sejam explorados, não só pelos imperialistas, não só pelos europeus, não só pelas pessoas de pele branca, porque não confundimos a exploração ou os factores de exploração com a cor da pele dos homens; não queremos mais a exploração no nosso país, mesmo feita por negros. Lutamos para construir, nos nossos países, em Angola, em Moçambique, na Guiné, nas Ilhas de Cabo Verde, em S. Tomé, uma vida de felicidade, uma vida onde cada homem respeitará todos os homens, onde a disciplina não será imposta, onde não faltará o trabalho a ninguém, onde os salários serão justos, onde cada um terá o direito a tudo o que o homem construiu, criou para a felicidade dos homens. É para isso que lutamos. Se não o conseguirmos, teremos faltado aos nossos deveres, não atingiremos o objectivo da nossa luta”.
Cabral tinha consciência de que “temos na própria África exemplos a seguir, e temos igualmente em África exemplos que não devemos seguir” e sabia que “se nós, amanhã, trairmos os interesses dos nossos povos, não será porque não o soubéssemos, será porque quisemos trair e não teremos então qualquer desculpa”.
De forma inequívoca, pronunciava-se tanto contra o colonialismo, a luta de então, como contra o neocolonialismo, no futuro: “Em África, somos pela libertação total do continente africano do jugo colonial, porque sabemos que o colonialismo é um instrumento do imperialismo. Queremos pois ver varrida totalmente do solo de África todas as manifestações do imperialismo, estamos na CONCP inflexivelmente contra o neocolonialismo, seja qual for a forma que ele tomar. A nossa luta não é apenas contra o colonialismo português; queremos, no âmbito da nossa luta, contribuir da forma mais eficaz para expulsar para sempre do nosso continente a dominação estrangeira” [14] .
A par da libertação nacional, havia que lutar contra a exploração do homem pelo homem: “(...) Libertar-se do domínio estrangeiro não é a única preocupação dos nossos povos. Aprenderam por experiência e sob a opressão colonial que a exploração do homem pelo homem é o maior obstáculo ao desenvolvimento e progresso do povo, para além da libertação nacional. O nosso povo está decidido a participar activamente na construção de uma África nova realmente independente e progressista, baseada no trabalho e na justiça social, na qual o poder criador dos nossos povos, asfixiado durante anos, possa encontrar a mais livre e criadora expressão. Os povos da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde deram já, como escravos e colonizados, uma contribuição anónima mas considerável para o progresso mundial. Agora estamos decididos a sair do anonimato, a reconquistar a nossa personalidade e dignidade de homens e de africanos, para continuar ao serviço do progresso e do bem-estar da humanidade, dando o melhor de nós mesmos mas em plano de igualdade com os outros povos do mundo”.
Cabral integrava a luta do seu povo num contexto mais geral da luta anti-imperialista: “Lutando contra o colonialismo português, lutamos contra todas as forças inimigas de África, batemo-nos contra o imperialismo mundial. Se queremos realmente vencer o nosso inimigo, atingir mais depressa o dia da vitória e diminuir os inevitáveis sacrifícios que a luta exige dos nosso povos, não devemos perder de vista a realidade objectiva da nossa situação, sempre integrada no contexto histórico dos nossos dias”.
Estudioso do marxismo, Cabral, que aconselhava os militantes do partido a “pensar com a própria cabeça”, debruçou-se também sobre a questão da transição para o socialismo de uma sociedade africana pré-capitalista: “(...) O problema da passagem da sociedade feudal ou semi-feudal ou da sociedade tribal para o socialismo é um problema muito grande, mesmo do capitalismo para o socialismo. Se há marxistas aqui eles sabem que Marx disse que o capitalismo criou todas as condições para o socialismo. As condições foram criadas mas nunca ultrapassadas. Mesmo assim é muito difícil. Esta é mais uma razão para as sociedades tribais feudais ou semi-feudais darem o salto para o socialismo – mas não é um problema de salto. É um processo de desenvolvimento. Tem de se estabelecer os objectivos políticos e, baseado nas próprias condições, o conteúdo ideológico da luta. Ter ideologia não significa necessariamente que se tenha que definir se se é comunista, socialista ou qualquer coisa assim. Ter ideologia é saber o que se quer em determinadas condições próprias. Nós queremos no nosso país isto: que não haja mais exploração do nosso povo nem por brancos nem por pretos. Nós não queremos nenhuma forma de exploração” [15] .
Cabral teve o enorme mérito de, nas suas análises da sociedade guinense, não aplicar mecanicamente princípios eventualmente válidos em outras condições. Acreditava que as leis que regulam a evolução de todas as sociedades humanas são as mesmas, que a sociedade guineense “desenvolve-se da mesma maneira do que outras sociedades no mundo, de acordo com o processo histórico, mas devemos compreender claramente em que estágio está a nossa sociedade. Marx, quando criou o marxismo, não vivia numa sociedade tribal; acho que nós não temos necessidade de ser mais marxistas que Marx ou mais leninistas que Lenine, na aplicação das suas teorias” [16] .
6. O povo, esse construtor da história
As vitoriosas lutas pela libertação nacional dos povos das antigas colónias portuguesas foram de importância excepcional, contribuindo para mudanças profundas em África e no Mundo.
As guerras na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique resultaram não só na independência destes países e de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe mas também no desencadear do golpe militar de 25 de Abril de 1974 e na Revolução dos Cravos em Portugal. Na África Austral, as independências de Angola e Moçambique aceleraram a queda do regime racista da Rodésia de Ian Smith e a libertação do Zimbabwé, a independência da Namíbia, o fim do apartheid na África do Sul e a emergência do poder da maioria na pátria de Mandela.
Em meados dos anos Setenta e na década seguinte do século passado, estas vitórias dos povos africanos, por si só representando um progresso histórico inegável, criaram esperanças de novos avanços nas lutas de emancipação em África, em especial com a instalação no poder em Angola e Moçambique de partidos que se assumiram então como marxistas-leninistas e proclamaram a construção do socialismo como objectivo. Expectativas reforçadas pouco depois com a chegada ao poder, na África do Sul, do African Nacional Congress, integrando o Partido Comunista Sul-africano e os sindicatos progressistas.
Essas expectativas não se confirmaram.
O que falhou, então, em África, e no caso das antigas colónias portuguesas ao longo destes últimos 30 anos de independências políticas? No exemplo da Guiné-Bissau, como pôde uma luta de libertação nacional heróica – conduzida sempre com o objectivo expresso de, após a independência, ser aprofundada a sua natureza revolucionária e anti-imperialista – desembocar num país em que a evolução política, económica e social destas três décadas coloca em causa a própria integridade?
Regressemos a Amílcar Cabral, cuja obra teórica é hoje, infelizmente, pouco conhecida na Europa. Em Maio de 1972, em Conakry, num simpósio organizado pelo Partido Democrático da Guiné, de Ahmed Sekou Touré, em homenagem a Kwame Nkrumah, o líder do PAIGC, a propósito do afastamento do histórico dirigente ganês, falou de “traição”, denunciou “essa terrível realidade de África que é o neocolonialismo”, lembrou que “o imperialismo é cruel e não tem escrúpulos, mas não podemos culpá-lo de tudo, porque, como diz o povo africano, 'o arroz só se coze dentro da panela'” e colocou uma série de questões, já então actuais: “Até que ponto o sucesso da traição ao Gana terá estado, ou não, ligado a problemas de luta de classes, a contradições na estrutura social, ao papel do partido e outras instituições, incluindo as forças armadas, no âmbito do novo Estado independente? Até que ponto (...) o sucesso na traição ao Gana terá estado ou não ligado ao problema da definição correcta desta entidade histórica, deste construtor da história que é o povo, e à sua acção quotidiana para a defesa das suas próprias conquistas na independência?” [17] .
Já antes, Cabral chamara a tenção para a necessidade das massas populares controlarem o poder: “Temos que estar vigilantes. Por esta razão: a ideia da luta contra o inimigo foi lançada por elementos da pequena burguesia – pela pequena burguesia revolucionária, se se preferir – com os camponeses e os trabalhadores urbanos juntando-se mais tarde para garantir a base essencial para a luta. Mas a tendência normal da pequena burguesia é o comportamento burguês – querer ser patrão – e assim o desenvolvimento da luta pode cristalizar-se. Na verdade, isso acontece não só com elementos da pequena burguesia, mas também com os camponeses; há sempre uma forte tendência par que o programa do movimento adquira um cariz burguês. Devemos ter muito cuidado com isto hoje e muito mais especialmente no futuro. O perigo pode ser reduzido? Só poderemos reduzi-lo com o constante aumento de participação e controle das massas em todo o movimento de libertação” [18] .
Com “a globalização económica do sistema capitalista dominante e com o seu desígnio de fazer do Mundo um mercado único”, a maioria dos países africanos vive hoje situações dramáticas – fome, pobreza crescente, novas e velhas doenças, guerras civis e conflitos internos intermináveis (Sudão, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Guiné-Bissau...), corrupção das classes dirigentes, dívidas externas estatais colossais, agressões ambientais, falta de água potável até –, havendo indicadores que mostram que se aprofunda cada vez mais o fosso entre ricos e pobres, quer no interior de cada país, quer entre estas sociedades subdesenvolvidas e exploradas da periferia e as sociedades da abundância do centro do império.
Assim, em relação a África, colocam-se questões fundamentais, abordadas já, como vimos, por Amílcar Cabral, há 30/40 anos com uma lucidez que ainda hoje surpreende: aos novos estados africanos correspondem de facto nações? O estado nacional pode sedimentar-se em África quando tende a desaparecer noutras partes do Mundo? Sem estados nacionais consolidados pode avançar o processo de construção da unidade africana, em espaços regionais e à escala continental? Qual a natureza de classe dos actuais estados africanos? A burguesia “revolucionária”, uma vez chegada ao poder, “suicidou-se”, identificando-se com as classes trabalhadoras, ou seguiu as solicitações naturais da sua mentalidade de classe, enfeudando-se ao imperialismo? Depois de conquistada a independência, as elites africanas no poder estão, de facto, interessadas em libertar os povos da exploração do homem pelo homem?
Cabe aos africanos – e, sobretudo, às classes trabalhadoras e suas organizações políticas e sindicais, aos revolucionários – responder a estes desafios e encontrar soluções para o prosseguimento da luta de emancipação social nas novas condições de dominação imperialista neste início do século XXI, respostas que, naturalmente, serão muito diferenciadas, tal como noutras latitudes, de acordo com a experiência e as condições concretas de cada povo.
Também em África, “a dualidade antagónica 'socialismo ou barbárie', tal como a apresentam cientistas sociais revolucionários como o húngaro István Mészaros e o egípcio Samir Amin, expressa bem a situação existente. Ou o capitalismo, na sua fase senil, destroi a civilização, empurrando a humanidade para a barbárie (ou a extinção), ou o capitalismo é erradicado da Terra”. Ou, parafraseando Amílcar Cabral, a alternativa que se coloca aos países africanos, hoje, mais do que nunca, é socialismo ou neocolonialismo.
1- Álvaro Cunhal, «Contribuição para o Encontro Internacional “América Latina: su potencialidad transformadora en el mundo de hoy”, realizado pela Fundação Rodney Arismendi, do Uruguai2- Amílcar Cabral, «Unidade e Luta/A Arma da Teoria», vol. I, Seara Nova, Lisboa, 1977
3- Basil Davidson, «A Libertação da Guiné/Aspectos de uma Revolução Africana», Sá da Costa, Lisboa, 1975, p. 171
4- Todas as citações de Cabral não explicitamente identificadas no texto são extraídas da obra citada, «Unidade e Luta/A Arma da Teoria»
5- Cabral, citado por Basil Davidson, em «A Libertação da Guiné...»
6- Cabral, no prefácio de «A Libertação da Guiné...», pp. 5 e 6
7- Cabral, «Unidade e Luta/A Arma da Teoria», pp. 201 e 202
8- «O Militante», n.º 2, Agosto de 1977. Trata-se de uma revista do PAIGC, que foi editada em Bissau
9- Oscar Oramas, «Amílcar Cabral Para Além do Seu Tempo», Hugin, Lisboa, 1998. Todas as citações deste número, referentes às relações entre o PAIGC e Cuba, são da referida obra
10- Mário Pinto de Andrade, «O Militante», n.º 3, de Setembro/Outubro de 1977
11- Cabral, «Unidade e Luta/A Arma da Teoria», p. 210
12- Amílcar Cabral, «O papel da cultura na luta pela independência», um texto lido na Reunião de Peritos sobre Noções de Raça, Identidade e Dignidade, da Unesco, em Paris, em Julho de 1972
13- Cabral citado por Davidson, em «A Libertação da Guiné...»
14- Amílcar Cabral, «Unidade e Luta/A Prática Revolucionária», vol. II, Seara Nova, Lisboa, 1977, p. 167
15- Cabral nos Estados Unidos, em 1972, num encontro com negros americanos, in «O Militante» n.º 3, de Setembro/Outubro de 1977
16- Amílcar Cabral em Londres, em 1971, in «O Militante» n.º 1, Julho de 1977
17- Amílcar Cabral, «Unidade e Luta/A Arma da Teoria», p. 197
18- Amílcar Cabral em Londres, em 1971, segundo a brochura «Our people are our mountains», traduzida em «O Militante», n.º 1, Julho de 1977, Bissau)
Constitui em um texto original publicado na integra sem alterações gramaticais.
P.Kassan 07/06/2011
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