Presença do Pensamento Revolucionário de Frantz Fanon no Brasil


RESUMO

Neste artigo, uso fontes bibliográficas e testemunhos para analisar a recepção de Fanon pelo meio intelectual brasileiro, assim como sua influência sobre a formação de identidades negras. Enquanto observo uma recepção morna, argumento que isso se deveu a três fatores: primeiro, a especificidade da esquerda latino-americana nos anos 1960; em segundo, uma constituição racial e nacional totalmente oposta a conflitos raciais; e, em terceiro, o número reduzido nas universidades brasileiras de professores e pesquisadores negros que abordem a formação da identidade negra ou a afirmação de sujeitos racialmente oprimidos.


Frantz Fanon é um nome central nos estudos culturais, pós-coloniais e africano-americanos, seja nos Estados Unidos, na África ou na Europa. Falamos muitas vezes de estudos fanonianos, tal o volume de estudos que têm a sua obra como objeto de reflexão. Meus colegas e alunos negros brasileiros devotam a ele a mesma admiração, respeito e devoção que seus irmãos de cor africanos e do hemisfério norte. No entanto, quando busquei material para escrever este artigo, deparei-me com um silêncio impactante, em revistas culturais ou acadêmicas, que perdurou até meados da década de 1960.

No Brasil, como em toda a parte, Fanon entrou na cena cultural quando a violência revolucionária estava na ordem do dia, embora tenha sido lido timidamente, ombreado por guerrilheiros pensadores como Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Torres; ou por lideranças negras como Stockley Carmichael, Malcom X e Eldridge Cleaver; ou Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Kwame N'Krumah. Mas, passada essa fase, seu pensamento, ao contrário do que ocorreu alhures, não foi objeto da reflexão exegética e crítica por parte de universitários e acadêmicos brasileiros, estabelecidos em centros de estudos.

OS ANOS 1960 E A EPIDEMIA SARTRE


O pensamento de Fanon chega ao Brasil como chegaram todas as idéias novas - em livros europeus - e numa época em que o marxismo e o existencialismo disputavam o proscênio da cena cultural e política brasileira.

Uma leitura atenta das principais revistas culturais brasileiras dos anos 1950 não me rendeu nenhum conhecimento sobre a recepção de Fanon. É como se a publicação de Peau noir, masques blancs (1952) tivesse passado despercebida. A Anhembi, de São Paulo, publica, entre 1953 e 1955, todos os estudos de relações raciais entre brancos e negros em São Paulo, frutos do projeto coordenado por Roger Bastide e Florestan Fernandes, além de algumas reações a estes estudos. O próprio Bastide, depois de retornado a Paris, em 1954, escreve regularmente críticas e comentários a livros que estão sendo lançados na Europa, principalmente na França; mas não menciona Fanon em sua atividade recensória. Nada encontramos também na Revista Brasiliense. Clóvis Moura, Florestan Fernandes e Octávio Ianni escrevem na revista sobre temas negros (revolta dos malês, relações raciais, poesia), mas sem mencionar o autor martinicano. Sérgio Milliet, em 1958, faz uma resenha abrangente da poesia negra e, como não podia deixar de ser, cita os poetas da négritude e Sartre. Apenas.

O Brasil começa a se familiarizar com as idéias de Fanon um pouco antes de sua morte, mais precisamente durante a estadia de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir no país, entre agosto e setembro de 1960. Sartre e Beauvoir chegam ao Rio de Janeiro, vindos de Havana, para promover a solidariedade internacional necessária para sustentar a revolução cubana e a guerra de libertação da Argélia. Certamente a intelectualidade brasileira, tão próxima do que se passava em Paris, acompanhava, através de Les Temps Modernes, as posições anticolonialistas do filósofo. A sua peregrinação à China, a Cuba e ao Brasil tinha claramente um caráter militante. "O colonialismo é um sistema que nos infecta com seu racismo", escrevera Sartre, em 1956. A sua militância vai além das palavras: durante sua estada no Brasil, Sartre passará a responder a um processo criminal em Paris, junto com outros 121 intelectuais que assumiram abertamente a cooperação com a Frente Nacional de Libertação da Argélia.

Na década anterior, o jornal negro Quilombo publicara trechos de seu Orfeu Negro, a mostrar que o "racismo anti-racista" dos negros francófonos encerrava em si uma nova dialética de libertação. No entanto, não há registro de que Sartre tenha se encontrado com Abdias do Nascimento ou com qualquer outra liderança política negra brasileira. Sartre estava entre nós, defendendo as mesmas posições antiimperialistas dos comunistas e da esquerda católica com relação a Cuba e à América Latina, à Ásia e à África; e a luta anti-racista e anticolonial dos africanos começava a ficar mais próxima.

Não tenho informações sobre se Sartre citou Fanon em suas conferências, mas as idéias do jovem martinicano causavam grande impressão sobre Sartre à época, como se pode inferir dos diários de Beauvoir. Ao recordar-se de uma visita a um barracão em Ilhéus, por exemplo, ela nota "os homens de pele e cabelos escuros nos olhavam, machadinhas em mãos, o ódio nos olhos". A revolução no Terceiro Mundo, como pensava Fanon, deveria ser obra de camponeses e não desses trabalhadores das docas que também eles viram em Ilhéus, "musculosos, saudáveis, que sabiam rir e cantar". "Comparado aos camponeses, o proletariado se constitui no Brasil uma aristocracia", anotou Beauvoir2. Sartre também chamou atenção para a segregação que os negros brasileiros sofriam, à medida que percebia que seus interlocutores eram todos brancos das classes média e alta:

Jamais vimos nos salões, nas universidades, nem nos auditórios um rosto chocolate ou café com leite. Sartre fez essa observação em voz alta durante uma conferência em São Paulo, depois se corrigiu: havia um negro na sala - um técnico de televisão3.

Evidentemente, Sartre e Beauvoir não encontraram no Brasil quem pensasse que os negros brasileiros fossem vítimas de racismo; encontraram, ao contrário, o discurso unânime de que a segregação dos negros era econômica e a luta libertadora deveria ser de classes. Não pareceram plenamente convencidos, pois, segundo Beauvoir, "o fato é que todos os descendentes dos escravos continuaram proletários; e que, nas favelas, os brancos pobres se sentem superiores aos negros". Talvez. Mas o sucesso de Sartre no Brasil se deveu às suas conferências sobre o colonialismo e a necessidade histórica das lutas de independência dos povos do Terceiro Mundo.
O anti-racismo e o anticolonialismo de Sartre conviveram, no Brasil, com o republicanismo de sua audiência - a classe média letrada de estudantes, escritores e intelectuais. O Brasil, para Sartre, não era um simples transplante europeu como os Estados Unidos; afinal, "todos os [brasileiros] que encontrei sofrem a influência dos cultos nagô". A assimilação e a integração não pareciam aqui engenhosos discursos de dominação; ao contrário, pareciam ter amulatado o país, como queria Freyre e também pensava Jorge Amado, seu anfitrião. Aliás, Sartre e Beauvoir já estavam de há muito familiarizados com as idéias de ambos. Devemos lembrar que extratos de Cacau haviam sido publicados em Les Temps Modernes, assim como uma resenha elogiosa da edição francesa de Casa-grande e senzala (Pouillon, 1953), e que Quincas Berro D'Água seria publicado na mesma revista depois de seu retorno a Paris.


Para compreender a posição de Sartre é preciso lembrar que o mundo do pós-guerra polarizara-se rapidamente em dois eixos. No primeiro, a contraposição se dera em torno da descolonização e do racismo, que opunham o Norte ao Sul. Sartre participara ativamente da construção desse pólo. Escrevera o prefácio da Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de la langue française (1948, 1949), em que abraçara a negritude, o movimento de afirmação identitária e de reconstrução cultural, étnica e racial de africanos e afro-caribenhos, ainda que fazendo uso da velha concepção de racismo como doutrina - a negritude, segundo ele, seria um racismo anti-racista. Desde os anos 1950, porém, passara a acolher nas páginas de sua revista uma nova concepção do que era o racismo no pós-guerra: aquele, que apesar de negado doutrinariamente, era realizado e vivido nas práticas sociais e políticas de colonizadores e colonizados. No segundo eixo, a polarização se dera entre os intelectuais que defendiam a ordem burguesa e liberal, por um lado, e aqueles que se faziam porta-vozes dos interesses operários e camponeses, a partir do marxismo ou de outras ideologias. O primeiro eixo é marcado pelas raças e pela descolonização; o segundo, pela luta de classes e pelo antiimperialismo. Ora, Sartre e Fanon representavam a fusão do antiimperialismo, do anti-racismo, da descolonização e das lutas de classes.

No Brasil dos anos 1950 e 1960, entretanto, esses dois eixos não se encontravam: liberais e marxistas, brancos e negros, igualmente, tinham o mesmo projeto anti-racista de construção de uma nação mestiça, brasileira e pós-européia, que ultrapassasse a polaridade entre brancos, de um lado, e negros e indígenas, de outro. O que os dividia era apenas a defesa da ordem burguesa ou a aposta na luta de classes. As raças desapareciam, assim, na superexposição conceitual e política das classes sociais. Passava-se o mesmo em toda a América Latina, inclusive na Cuba socialista, que Fanon quis conhecer e que Sartre conhecera em 1960. Não fora Fanon fruto da convergência entre essas duas polarizações. Guerreiro Ramos, ativista negro e sociólogo, o poderia ter introduzido aos brasileiros de 1960, pois tinha alguma afinidade com o seu pensamento. Não só ele, mas todos os demais membros do Iseb, como observou Renato Ortiz:

O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do Iseb é que ambos se estruturam a partir dos mesmos conceitos fundamentais: o de alienação e o de situação colonial. As fontes originárias são também, nos dois casos, idênticas: Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier.
Se Guerreiro não o fez foi porque a desalienação e a descolonização cultural que buscava não passavam pela luta de classes. Provavelmente conhecia Fanon, pois era leitor de Présence Africaine, de Esprit e de Les Temps Modernes, além de revistas acadêmicas francesas. O fato é que, para articular o seu libelo contra a colonização cultural dos brasileiros "claros" e "escuros", Guerreiro bebera em algumas das mesmas fontes que Fanon, mas não em todas. A mesma inclinação por Hegel e pelo existencialismo, quando somadas a situações nacionais e projetos pessoais diversos, levara Guerreiro a posições nacionalistas e populistas, afastando-o de doutrinas revolucionárias que pregavam a violência como modo de transformação social ou que defendiam a manutenção de diferenças culturais entre colonizados e colonizadores.
Também a imprensa negra paulistana dos anos 1960, formada por homens e mulheres com situação de classe mais precária que Guerreiro, parecia desconhecer Fanon em sua campanha de solidariedade aos movimentos de libertação africana, continuando sintonizada com o discurso da négritude de Senghor e de Sartre dos anos 1948, a quem citam diretamente.

FANON E A ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA


Certamente, a esquerda brasileira tomou conhecimento de Fanon através do extrato de Damnés de la terre (1961), publicado em Les Temps Modernes, e do prefácio de Sartre. Ou seja, o Fanon sartriano de De la violence. Michel Löwy, por exemplo, se lembra de ter discutido o prefácio de Sartre com seus companheiros em São Paulo, provavelmente ainda em dezembro de 1961. Há que se notar dois fatos na informação: primeiro, foi o prefácio de Sartre e não o artigo ou o livro de Fanon que foi discutido; segundo, a esquerda brasileira discutia seriamente a violência revolucionária, o que significava que os autores que escreviam sobre a América Latina, sobre táticas de guerra urbana ou guerrilha, ou faziam a teoria geral da revolução em sintonia com a filosofia européia, eram privilegiados na leitura.

O silêncio da esquerda brasileira sobre Fanon precisa ser entendido, ademais, como discordância política, tantos são os sinais indiretos de sua presença, a partir de meado dos anos 1960. O que acontece tanto no mundo negro quanto no branco16. Alguns fatos devem ser listados para que se compreenda como se estabeleceu essa relação difícil entre Fanon e a esquerda no Brasil. O primeiro deles é que pouco depois desse primeiro contato sobreveio o golpe militar de 1964, que levou ao exílio um grande número de militantes. O segundo é que aqueles que acreditavam na violência revolucionária passaram à clandestinidade, tornando tênues os seus elos com o mundo cultural. O que se lê sobre Fanon, portanto, nos anos 1960, é muito pouco. A situação começa a mudar apenas quando as cidades norte-americanas são tomadas pelas chamas das riots negras, e se sabe que Fanon era lido e discutido febrilmente pelos revolucionários norte-americanos, como os Panteras Negras.

A revista Tempo Brasileiro publica, em 1966, um artigo de Gérard Chaliand, em que o autor abre uma nota de pé de página para registrar: "apoiando-se nas análises mais contestáveis de Fanon - aquelas sobre os camponeses africanos. Ver sobre esse assunto a melhor e, aliás, a única análise marxista consagrada ao pensamento de Fanon: 'Frantz Fanon et les problèmes de l'indépendance' (La Pensée, nº 107)"17. Referia-se a Nghe, um dos grandes adversários de Fanon no mundo africano.

Os marxistas brasileiros, portanto, seguiam as críticas marxistas - e também liberais - às concepções políticas de Fanon. No Brasil, a esquerda reverenciava Fanon, mas, se o lia em francês, não o citava; impondo-se um silêncio obsequioso. O mesmo não se passava com os marxistas da Monthly Review, cujos artigos eram regularmente traduzidos e publicados por revistas brasileiras. O motivo da reverência e do silêncio sobre Fanon pode ser buscado, como já sugeri, na sua centralidade para as lutas que se desenvolviam nos Estados Unidos daquele tempo. Os rebeldes afro-americanos também se consideram africanos e sujeitos coloniais, atitude muito bem captada pelas palavras dos editores da Monthly Review:

Se você ainda não conhece, grave bem o nome de Frantz Fanon que se tornou talvez o mais respeitado porta-voz dos oprimidos coloniais. Seu livro Les damnés de la terre acaba de ser publicado sob o título The wretched of the earth,e o recomendamos enfaticamente.
Em novembro de 1966, Goldman resenha em cinco páginas Studies in a dying colonialism, e cunha uma frase lapidar sobre o que significava Fanon para a rebelião negra daqueles anos:
Fanon é popular porque fala, sobretudo, da própria luta e por dentro da Revolução, como um participante. Os jovens radicais negros que o lêem, que internalizam sua visão e respondem com fervor às suas idéias, são, ademais, pessoas que lutam intensamente contra um sistema que não têm certeza se podem derrubar. Para Fanon, o importante é a transformação, a mutação interior que ocorre durante a luta, o modo como os "condenados da terra" se libertam durante a confrontação inevitável entre opressores e oprimidos. E há outra idéia que o médico negro da Martinica, que escreve sobre a Revolução argelina, sugere a esses jovens radicais: é que o sistema contra o qual eles lutam é o mesmo contra o qual ele, Fanon, luta, e que ambos se opõem a um opressor comum em nome de um mesmo ideal.


Significaria Fanon o mesmo para os negros brasileiros? O certo é que, finalmente, em 1968, aparece a edição brasileira de Condenados da terra, rapidamente retirada de circulação pelos órgãos de repressão política, mas não antes de cair nas mãos de dezenas de militantes. Pensamento explosivo tanto para a luta de classes quanto para o projeto de democracia racial. Buchanan, na Revista da Civilização Brasileira, escreve: "Deve-se lembrar que Malcolm X - que junto com Frantz Fanon, foi a principal inspiração de Carmichael - foi o único líder negro americano que aplaudiu o assassinato de Kennedy".

Na mesma revista, o crítico literário comunista Nelson Werneck Sodré, num grande balanço dos lançamentos do ano, registra: "O colonialismo, em sua brutalidade, está espelhado na obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, que estuda os efeitos da tortura". Nesta frase ouve-se o eco das torturas que a ditadura militar começa a rotinizar, assim como a simpatia por interpretações semelhantes à de Goldman: "Uma das contribuições mais importantes para o pensamento social, é sua brilhante análise das relações entre desordem mental e colonialismo, entre desajustamento sexual e repressão política".

Psicanalista brilhante e mau político, para uns; ideólogo radical, para outros, Fanon terá de esperar por uma nova esquerda para ser lido com simpatia. Até mesmo o líder negro Abdias do Nascimento que, em seus artigos dos anos 1960, traça influências do movimento negro, analisa a conjuntura internacional, enfatiza a négritude, a cultura negra, fala do estupro de origem da miscigenação brasileira, menciona as lutas de libertação na África, o "fermento do negro norte-americano", mas nada diz sobre Fanon:

Parafraseando Toynbee, e em virtude de certas condições históricas, um decisivo papel está destinado ao negro dos Estados Unidos num rumo novo - político e cultural - para os povos de cor de todo o mundo. Seria, por assim dizer, o recolhimento da herança legada pela atual geração de grandes negros - Leopold Sédar Senghor, Kwame N'Krumah, Langston Hughes, Jomo Keniata, Aimé Cesaire, Sekou Touré, Nicolás Guillén, Peter Abraham, Alioune Diop, Lumumba, James Baldwin, Mário de Andrade25.

Abdias era muito próximo ao Iseb e a Guerreiro Ramos e ambos nutriam imenso respeito por Toynbee, algo comum aos isebianos, como nos ensina Vanilda Paiva26. Frantz Fanon tornar-se-á uma referência importante para Abdias só depois de 1968, quando provavelmente o líder negro brasileiro é introduzido à obra de Fanon, largamente traduzida, discutida e comentada nos Estados Unidos, onde está exilado. Só a partir do Genocídio do negro brasileiro27 Fanon passa a ser referido nos escritos de Abdias. O mesmo acontecerá com Octávio Ianni e com muitos intelectuais brasileiros exilados. O seu Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina já absorve a discussão de Fanon e dos marxistas da Montly Review. O mesmo é verdadeiro para Clóvis Moura. Ianni, de volta ao Brasil nos anos 1980, e reintegrado à universidade, fará de Fanon leitura obrigatória em suas classes e o indicará aos estudantes negros que dele se aproximam.

Se "Fanon era nome cortado na esquerda" brasileira, nos meados de 1960, como disse José Maria Pereira, que, vindo dos grupos lisboetas ligados ao MPLA angolano, certamente conhecia Fanon em 1962, não o era certamente em toda esquerda, sobretudo a de inspiração católica. Estes ganhavam influência à medida que os partidos comunistas eram dizimados pela repressão política e não repudiavam totalmente a violência revolucionária dos colonizados e o anti-racismo, aos quais o nome de Fanon estava indissoluvelmente ligado. A revista Paz e Terra, órgão muito próximo da esquerda católica, publicou, no seu número 7, a tradução de um artigo de Raymond Domergue, que toma justamente Os condenados da terra como parâmetro para traçar um guia da ação política católica em face da emergência de lutas revolucionárias no Terceiro Mundo:
Esta longa seqüência de citações [de Fanon] nos parecia necessária para demonstrar como a violência que se torna uma situação pode de repente fazer uma irrupção sob forma de violência armada. A violência revolucionária não é senão uma transposição de uma violência precedente que tem suas raízes em uma exploração de tipo econômico.


No exílio chileno desde 1964, foi o pedagogo revolucionário Paulo Freire, também muito influenciado pelo pensamento existencialista católico e pelo nacionalismo anticolonialista do Iseb, quem fez a leitura de Fanon mais absorvedora. Em sua Pedagogia do oprimido, Freire foi, talvez, o primeiro brasileiro a abraçar as idéias de Fanon. Pelas indicações do próprio Freire, ele tomou conhecimento do revolucionário martinicano entre 1965 e 1968. É o que ele insinua em duas passagens de Pedagogia da esperança:

Mais tarde, muito mais tarde, li em Sartre (prefácio a Os condenados da terra,de Frantz Fanon ) como sendo uma das expressões da "conivência" dos oprimidos com os opressores.


Tudo isso os estimulava [os camponeses espanhóis] como a mim me estimulara a leitura de Fanon e de Memmi, feita quando de minhas releituras dos originais da Pedagogia. Possivelmente, ao estabelecerem sua convivência com a Pedagogia do oprimido,em referência à prática educativa que vinham tendo, devem ter sentido a mesma emoção que me tomou ao me adentrar nos Condenados da terra e no The colonizer and the colonized. Essa sensação gostosa que nos assalta quando confirmamos a razão de ser da segurança em que nos achamos.
A última passagem sugere que a leitura de Condenados se deu quando o manuscrito de Pedagogia já estava pronto, pois Freire fala em "minhas releituras dos originais". Como o manuscrito é de 1968 e a primeira edição de 1970, essa é uma interpretação plausível. Mas, ao mesmo tempo, Freire dá indicações de que leu Fanon na edição mexicana de 1965. O certo, portanto, é que ele toma conhecimento de Fanon entre 1965 e 1970, um período de radical mudança na sua teorização:


Absorvido pelo trabalho prático desde a criação do seu método, restara a Freire pouco tempo para o trabalho teórico, e quando a queda do governo Goulart o obriga a parar, ele precisa recuperar o seu ponto de partida em 1959. Estamos, efetivamente, diante de "um atraso relativo da teoria". Freire não pudera ainda digerir as novas influências e incorporar teoricamente novas posições; por isso, sua consciência teórica já não dava conta de toda a sua prática e ele carecia, naquele momento, de instrumentos teóricos e metodológicos que possibilitassem uma reinterpretação da realidade e uma revisão profunda do seu discurso pedagógico. Um esforço mais conseqüente nesta direção ele o fará mais tarde e Pedagogia do oprimido é o seu resultado.
Seja como for, os intelectuais brasileiros disponíveis para receber a influência revolucionária e radical de Fanon se encontram, depois de 1964, livres de fidelidades partidárias e descolados de correntes filosóficas bem estabelecidas.


Outro receptor notável foi Glauber Rocha. Alguns, como Ismail Xavier, chegaram mesmo a ver influência direta de Fanon nos escritos do jovem Glauber:

É notável, em Glauber, o sentimento da geopolítica (de que o cinema é um dos vetores) como eixo de um confronto no qual o oprimido só se torna visível (e eventual sujeito no processo) pela violência. Apoiado em Frantz Fanon, ele explícita tal sentimento em "Por uma estética da fome", acentuando a demarcação dos lugares e o conflito estrutural que deriva da barreira econômico-social, cultural e psicológica que separa o universo da fome do mundo desenvolvido.
Xavier faz a conexão entre Fanon e Glauber a partir do seguinte trecho:


Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. Mas Glauber, ele mesmo, não se lembra de ter lido Fanon por essa época. O mais provável é que tenha lido Sartre, pois ele diz em outro texto:

Foi na época de JK, inda na Bahia, que ouvi falar em nacionalismo anti/Ufânico. Entrando jovem no ltamaraty, Arnaldo Carrilho levou a Paixão do cinema novo pros Festivais Internacionais /era o que Brazyl precisava pra se descolonizar culturalmente no mundo. Dialeticamente uma prioridade era o desenvolvimento dos mercados internos (economia /cultura) mas antes de chegar às minhas mãos por indicação do teatrólogo Antônio Pedro Os condenados da terra,de Frantz Fanon, já o sopro de Jorjamado nos lançava, antes do Modernismo pra romper as cadeias da submissão ideológica, núcleo do complexo de inferioridade colonial, nostro câncer, principal arma dos invasores.

Ao que parece, Glauber toma conhecimento de Fanon apenas em 1968, pela edição brasileira de Os condenados da terra. Mas Ismail Xavier tem razão: em Glauber, Fanon parece viver inteiro e não pela metade, ser um pensamento e não apenas um nome. A tese de Xavier é corroborada por Mendonça.

Não deixa de ser revelador que os intelectuais inicialmente receptivos às idéias de Fanon nem mesmo citem o Pele negra, máscaras brancas. Freire e Glauber são iconoclastas à procura de uma nova linguagem, de um modo novo e terceiro-mundista de fazer cinema ou educar.
Quando Pele negra, máscaras brancas é publicado no Brasil já estamos em 1983. É a editora Fator, especialista em obras psicanalíticas, quem o faz. Ademais, apesar de a edição ter sido impressa no Rio de Janeiro, a Fator estava sediada em Salvador, onde também o Movimento Negro Unificado editava o seu jornal de circulação nacional. Haverá aí, certamente, alguma confluência entre o interesse editorial por uma obra muito influenciada pela psicanálise e o interesse comercial em abastecer o novo mercado criado por um segmento de classe média com consciência racial, já que Fanon passara a ser leitura de formação. Diz-nos Florentina Souza:
o periódico Nego, boletim do MNU-Ba, no seu número 1, publica sugestões de leitura que passam por Obras escolhidas de Amílcar Cabral, África - literatura, arte e cultura, organizado por Manoel Ferreira e, no número 3, o livro Pele negra, máscaras brancas,de Fanon [...]40.

OS JOVENS ESTUDANTES NEGROS DOS ANOS 1970 E 1980


A influência de Sartre, e da sua leitura de Fanon, foi duradoura entre negros e brancos. Ainda em 1978, o editor-chefe do jornal Versus, da Convergência Socialista, cujos militantes negros foram muito ativos na fundação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, que precedeu o MNU, ainda buscava em Sartre, no seu prefácio a Os condenados da terra, a imagem para expressar o que se viveu naquela noite, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo:
Certa vez Sartre escreveu sobre a questão negra. Ali, ele falava uma coisa inesquecível, e que eu vou citar de memória... "O que vocês esperavam ouvir quando estas bocas negras se vissem livres das mordaças? Que gritassem frases doces, amenas?" Será que estas "mordaças" estão sendo arrancadas no Brasil? Sim, então. Foi o que vimos em São Paulo, numa noite histórica. Bocas negras gritando contra a injustiça e a opressão. Punhos erguidos, no lusco-fusco daquele momento em que, numa grande cidade, os homens cansados vão para casa. Não se ouviram frases amenas - e é bom que tenha sido assim. À humilhação de séculos, só o duro estômago do povo poderia resistir.


Do mesmo modo, a seção "Afro-latino-América" do Versus é lançada, em 1978, com a manchete "Nem almas brancas, nem máscaras negras", que faz trocadilho com o título de Fanon, mas busca referências cognitivas outras, comezinhas, como o "preto de alma branca"; ou tradicionais, como a observação de Nelson Rodrigues - "branco pintado, eis o negro do teatro nacional" - algumas vezes lembrada por Abdias do Nascimento.

Mais ainda. A Afro-Latino-América desconhecerá Os condenados da terra, publicado em 1968, no Brasil, ou a Pele negra, máscaras brancas ó que circulava entre alguns militantes negros desde meados dos anos 1970 em fotocópia da edição portuguesa da editora Paisagem, do Porto - para republicar, em seu número 18, de 1978, extratos do Orfeu negro, antecedido da seguinte advertência:

Dentro do atual contexto político, onde o Partido Socialista apresenta-se como alternativa mais conseqüente para a atuação das camadas marginalizadas da sociedade brasileira, Jean-Paul Sartre pensa a atuação do negro socialista. Discute a necessidade de não perder de vista as suas condições objetivas de negro e trabalhador. No entanto, foram os jovens estudantes negros dos anos 1970 e 1980 que, no Brasil, leram e viveram Fanon, de corpo e alma, fazendo dele um instrumento de consciência de raça e de resistência à opressão, ideólogo da completa revolução na democracia racial brasileira. As referências a esse fato pululam na literatura. Vou seguir apenas algumas pistas.

Na pesquisa que Alberti e Pereira coordenam no Cpdoc sobre o movimento negro brasileiro contemporâneo, oito militantes citam espontaneamente Fanon, ao falar de sua formação: Amauri Mendes Pereira, Gilberto Roque Nunes Leal, Hédio Silva Júnior, José Maria Nunes Pereira, Luiz Silva (Cuti), Mílton Barbosa, Regina Lucia dos Santos e Yedo Ferreira. Em pesquisa semelhante, conduzida por Márcia Contins, seis militantes citam também Fanon.

Michael Hanchard registra, a partir de entrevistas com esses militantes, que membros do Black Soul do Rio de Janeiro e São Paulo - cujas atividades, entre outras, incluíam distribuir cópias do Poder negro, de Stokely Carmichael, e de Os condenados da terra,de Frantz Fanon, para discussão em grupo - eram (mal)identificados pelas elites civis e militares como participantes de uma conspiração. Dada a natureza do regime ditatorial, a vigilância policial exercida sobre o Black Soul e o movimento negro em geral durante esse período não está documentada. Entretanto, um alto oficial do Serviço Nacional de Informações, o poderoso braço da inteligência do Estado, confirmou-me em entrevista pessoal que vários ativistas negros foram monitorados de perto nos anos 1970 porque se acreditava que faziam parte da engrenagem da conspiração comunista.

Treze anos depois de publicado o livro de Hanchard, quando os arquivos da polícia política (Deops) já estavam abertos aos pesquisadores, Karin Kosling pôde documentar a repressão ao MNU: "Em relatório da Divisão de Informações do Deops sobre ato público organizado pelo MNU, em 7/7/1980, Milton Barbosa, importante militante do MNU, citou Fanon para criticar o imperialismo". Analisando a documentação policial e depoimento de militantes da época, Kosling não tem dúvidas em listar as principais influências intelectuais dos jovens rebeldes negros: "Autores como Fernandes, ao lado de Eldridge Cleaver e Frantz Fanon, entre outros, introduziam a questão da luta de classes nos debates do MNU".

Florentina de Souza, olhando dois importante jornais negros, concorda no que diz respeito a Fanon:

É marcante a influência que os escritores negros no Brasil receberam das literaturas africanas escritas em língua portuguesa que chegavam ao Brasil por meio de jornais, revistas e livros, ou ainda a influência das traduções de Fanon e de textos de Garvey e DuBois que circulavam no movimento negro no Brasil desde a década de trinta.

Lendo alguns depoimentos de militantes negros dos anos 1970, tenho a impressão de que a recepção de Fanon não foi diferente no Brasil daquela que Goldman registrou nos Estados Unidos. Amauri de Souza, importante quadro do MNU no Rio de Janeiro, nos diz:
Quando eu comecei a ler Alma no exílio,que foi a experiência do Cleaver, que era uma das principais lideranças dos Panteras Negras, e logo depois entrei no Fanon, li os dois ao mesmo tempo... Foi uma loucura! Aquilo era demais! Fanon era a crucialidade, a violência como a parteira da História. Preconizava a violência do colonizador, o ódio... O Fanon era um pouco mais para mim do que era Che Guevara, porque o Che era um revolucionário que tinha morrido, portanto perdeu, e foi aqui na América e não era negro. O Fanon era negro. Foi uma proximidade maior que eu tive com ele. E era terrível... O Fanon não foi morto na luta, eles ganharam, fizeram a revolução... E na minha cabeça, aquilo me apaixonou.


Mas a primeira reflexão mais sistemática (e talvez única) sobre o pensamento de Fanon feita por intelectuais negros numa revista acadêmica brasileira aconteceu apenas em 1981 e foi assinada por um coletivo, Grupo de Estudos sobre o Pensamento Político Africano (GEPPF), o que denota tratar-se de um meio caminho entre reflexão acadêmica e reflexão política. O grupo era formado por ativistas, estudantes e professores do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da Universidade Cândido Mendes, dirigido por José Maria Nunes Pereira. Esse artigo demonstra a consolidação da preocupação com o racismo, como questão importante e autônoma, na nova esquerda marxista em formação:


Fica claro [com a leitura de Fanon] que o racismo é conseqüência de uma situação de dominação socioeconômica, mas que possui mecanismos próprios, de ordem psicológica, que concedem a ele certa autonomia. Contudo, a referida situação continua alimentando e alimentando-se do racismo. Isto não se aplica apenas ao fato colonial, mas também ao neocolonial e às sociedades capitalistas com apreciável contingente de mão-de-obra de antigas colônias. No primeiro caso, como vimos, a função fundamental do racismo é a legitimação da ocupação e exploração diretas. Na situação neocolonial, o preconceito racial é utilizado com os mesmos objetivos, com as necessárias adaptações decorrentes de nova realidade. Ele é um auxiliar dos mecanismos de subordinação neocolonial.


Parece claro que continua havendo restrições a Fanon como estrategista político, principalmente à sua crença na potencialidade revolucionária do campesinato:
Ele [Fanon] não faz uma verdadeira análise de classe da sociedade colonial. Existem referências a classes ou camadas. O proletariado, o lúmpen-proletariado e o campesinato merecem-lhe certa atenção e uma caracterização deficiente. Referências existem à burguesia e às elites locais, possivelmente integradas por elementos da burguesia. A sua análise privilegia a polarização cidade-campo.


Se o grupo critica a posição excessivamente classista e economicista da esquerda tradicional, para quem o movimento negro ainda representava um perigo sério de divisão das camadas exploradas, também se põe à distância daqueles, no movimento negro, que se afastam da matriz marxista:

Cremos que a posição dos que procuram minimizar a questão racial diluindo-a pura e simplesmente na social, assim como os que postulam a independência absoluta das organizações anti-racistas (e sua partidarização) relativamente ao resto da sociedade, dificultam, ainda que involuntariamente, a morte da ideologia da "democracia racial".

A RECEPÇÃO ACADÊMICA


Gordon, Sharpley-Whiting e White54 caracterizam o desenvolvimento dos estudos sobre Fanon em quatro fases. A primeira fase foi marcada pela literatura revolucionária dos anos 1960, que no Brasil, como vimos, encontrou acolhida nas idéias de Glauber, sobre o cinema-novo, e de Paulo Freire, sobre a pedagogia dos oprimidos. A segunda fase, que eles chamam de biográfica, não teve representantes no Brasil e passou praticamente em branco. Não apenas não há biografia de Fanon escrita por autor brasileiro como, até hoje, não há uma só biografia de Fanon editada no Brasil. Temos apenas breves notas biográficas. A terceira fase, que marca o interesse da teoria política por Fanon passaria também quase em branco não fosse o fato de Renate Zahar56 ter sido leitura de referência do Grupo de Estudos do Pensamento Político Africano. Cabe mencionar também o já citado livro de Ianni sobre o imperialismo. Mas Fanon continua apenas uma referência, sem que tais estudos tivessem gerado reflexões brasileiras de maior originalidade ou envergadura sobre seu pensamento político. A quarta e última fase, a dos estudos pós-coloniais, é praticamente ainda nova no Brasil, e chega apenas através dos comentários de Bahba, Gilroy, Gates Jr. ou de comentaristas brasileiros aos pós-colonialistas, como Sérgio Costa e Olívia da Cunha.

No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a mobilização negra dos anos 1970 não gerou a entrada massiva de negros nas universidades, e a criação dos Neab (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) é relativamente recente no país. A Associação Brasileira de Pesquisadores Negros data apenas do ano 2000.

Os estudos fanonianos no Brasil não se constituíram realmente em campo com alguma autonomia, e as referências a Fanon, além de esparsas, parecem seguir diferentes linhas. Uma rápida busca em bancos de dados sobre dissertações e teses universitárias mostra que Fanon é lido nas universidades brasileiras principalmente nos cursos de pós-graduação em literatura, em comunicação e artes, em psicologia social, e em ciências sociais. Quando os debates que animaram os anos 1960 e 1970 são revisitados, sua obra volta a despertar interesse.
No entanto, apenas três autores brasileiros dedicaram artigos ou parte de capítulos de livros à discussão de Fanon. Renato Ortiz tem, sem dúvida, a reflexão mais profunda e refinada de Fanon58. Estudioso do mundo intelectual francês do pós-guerra, Ortiz preparou para a editora Abril, que publicava, então, uma coleção de divulgação científica chamada Grandes Cientistas Sociais, um volume sobre Fanon. Esse volume nunca chegou a ser publicado, mas Ortiz retoma, anos depois, os originais da sua "Apresentação" para publicá-la como artigo na revista Idéias, do Departamento de Sociologia da Unicamp. É Ortiz quem retraça a formação do pensamento de Fanon de acordo com três movimentos intelectuais centrais ao mundo intelectual do pós-guerra na França - a releitura de Hegel, o debate entre marxistas e existencialistas, e, finalmente, a négritude. Silencia, contudo, sobre a formação psicanalítica de Fanon. A preocupação explícita de Ortiz é com a teorização fanoniana do racismo e da nação. Tempos depois, Ortiz revisita Fanon, agora em conexão com seu estudo sobre o pensamento do Iseb, e descobre as raízes semelhantes do anticolonialismo cultural dos pensadores isebianos - Hegel, Sartre e Balandier. Deixa escapar, todavia, a grande influência da fenomenologia de origem católica sobre os principais membros do Iseb.


Cabaço e Chaves, na esteira do 11 de setembro, relêem Fanon para retomarem os pontos-chave de seu anticolonialismo e da sua justificativa da violência revolucionária. Relembrando os debates dos anos 1960, escrevem:

[Fanon] abalou a "boa consciência" das metrópoles ocidentais afirmando que "um país colonial é um país racista" e assustou os círculos colonialistas denunciando a violência do sistema e explicando que "o homem colonizado liberta-se em e pela violência"; escandalizou uma certa esquerda intelectual pondo em causa instrumentos teóricos da ortodoxia marxista; provocou a indignação dos partidos operários ocidentais ao afirmar que "a história das guerras de libertação é a história da não verificação da tese" da comunidade de interesses entres classe operária da metrópole e o povo colonizado; coerente com sua convicção, acusou a não-violência e o neutralismo de serem formas de cumplicidade passiva com a exploração dos colonizados ou de "desorientação" das elites dos povos subjugados.

Mais recentemente, o pensamento de Fanon passa a ser discutido nas universidades brasileiras na confluência entre os estudos de gênero e de raça; e uma cuidadosa tradução de Pele negra, máscaras brancas, com prefácio de Lewis Gordon, acaba de ser lançada pela Editora da UFBA. Em resumo, Fanon entrou definitivamente no rol de autores clássicos, aqueles que servem de referência obrigatória para o estudo de alguns fenômenos do mundo moderno, entre eles, principalmente, o racismo e a violência política. Consolidou-se, do mesmo modo, no panteão dos heróis africano-americanos, tornando-se leitura obrigatória para ativistas ou cidadãos negros brasileiros. O fato, no entanto, é que ainda estamos engatinhando nas investigações sobre Fanon. Minha sugestão é de que isso se deve, mesmo que parcialmente, à pouca presença de negros nas universidades brasileiras e à conseqüente escassez de reflexão teórica sobre as identidades raciais. Se eu estiver certo, portanto, a entrada gradual, mas constante, de negros nas nossas universidades de pesquisa poderá abrir, quem sabe, uma larga avenida para os estudos fanonianos.



  • Texto originalmente publico em 19 de Junho no site http://www.scielo.br/

  • The struggle against oppression was the central thesis of Frantz Fanon's revolutionary philosophy

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