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Varnhagen e a ''invenção'' da história do Brasil.
Varnhagen e a ''invenção'' da história do Brasil.
Francisco Adolfo de Varnhagen é considerado um dos fundadores da historiografia brasileira enquanto conhecimento documentalmente conduzido, recebendo inclusive a alcunha de “Heródoto brasileiro”. Filho de um alemão residente no Brasil com uma portuguesa, Varnhagen nasceu em São Paulo em 1816. Mudou-se para Portugal aos seis anos de idade e de lá, das distâncias de além-mar, elaborou um dos mais completos elogios da História Brasileira à colonização portuguesa. Por volta de 1850 é publicada sua História Geral do Brasil, com a pretensão de ser um olhar abrangente sobre o passado brasileiro desde 1500, com posições explícitas e devidamente "documentadas".
Os trabalhos e os resultados de Varnhagen só são possíveis graças à criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), órgão financiado pelo império para institucionalizar todo conhecimento histórico de forma a legitimar o controle português. A Varnhagen, que já havia defendido os Bourbons e Bragança em armas num episódio sucessório em Lisboa, coube a tarefa de pintar um retrato do Brasil encomendado pela Coroa.
O passado é como uma sombra constante que ronda cada nova época. Cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa conhecer. A "apropriação" do passado segundo os interesses das classes detentoras do poder é algo muitíssimo importante, pois é sobre ele que se erguem presente e futuro. Assim sendo, deturpações, omissões, manipulações e falsificações não faltam para que se alcance o objetivo de forjar a "verdade" dos dominadores como sendo verdade geral.
No caso brasileiro, o projeto de nação recém-"independente" necessitava de um passado do qual pudesse se orgulhar, um passado de grandes feitos executados por homens nobres. Era preciso que o novo país se auto-identificasse geográfica e historicamente, sua natureza, suas riquezas, seus limites e fronteiras e também os fatos memoráveis de seus melhores filhos, os luso-brasileiros. O esquecimento não podia apagar as glórias vividas, elas deveriam constituir o quadro de nossa memória. Dessa forma, construiu-se a narrativa histórica conforme os interesses da monarquia, a história dos vencedores. E não faltaram os documentos que a sustentasse...
Em 1840 o IHGB abre um concurso para eleger o melhor projeto de escrita duma história do Brasil. O vencedor foi o alemão Karl Pillipp von Martius, lançando em seu trabalho os primeiros alicerces do mito da "democracia racial brasileira", concepção posteriormente reelaborada e desenvolvida em Casa Grande Senzala (1933), de Gilberto Freyre. Von Martius propõe uma história centralizadora, uma vez que para ele um estudo da diversidade e da variedade seriam inviáveis no caso do Brasil. Essa centralização visa criar elementos nacionais e comuns que motivem o surgimento de um "amor à pátria", uma vez que o país estava unificado politicamente sob a égide da monarquia e do catolicismo.
Eis o tipo de história do qual necessitavam as "elites" luso-brasileiras: um corolário de heróis à sua imagem e semelhança, um punhado de "grandes" acontecimentos, uma apologia aos valores sociais, culturais e artísticos europeus. E é Francisco Varnhagen quem assume o papel de destrinchar o passado, esculpi-lo e assim "inventar" a história do Brasil.
ELOGIO À EUROPA
A obra de Varnhagen é escrita num estilo enfadonho e monótono, opaco e distante. Nele, busca-se todo o tempo a ocultação dos conflitos, dos dramas e dos crimes de nosso passado. "Nessas linhas, sangue é palavra proibida", como diria um poeta.
O suposto patriotismo do autor é unilateral e engajado: o Brasil defendido com unhas e dentes é o da aristocracia branca e da família real. Sua teoria da miscigenação racial comprova e defende um suposto branqueamento total da população, o extermínio de índios e negros enquanto expressão fenotípica. Logo, seu postulado é o da supremacia branca sobre os demais, sob o manto de democracia.
Varnhagen defende que a independência política da nova nação brasileira não pode significar o abandono do legado colonial e sim o aprofundamento dos vínculos do Brasil (atrasado e bárbaro) com Portugal (racional e progressista). Nosso futuro deve ser nosso passado aprimorado, aperfeiçoado: um Brasil português erigido pelas aristocracias brancas e fomentado pela Coroa, que agora já não é mais externa e sim interna. Aliás, é só por esse motivo que Varnhagen defende e aceita como salutar o processo de independência: porque ele fôra efetivado por um príncipe lusitano, pela Casa de Bragança. A emancipação não veio contra a realeza mas sim pelas mãos dela própria. Agora o Brasil era português, imperial e além de tudo independente! Caso as coisas não se dessem dessa forma certamente reinaria em nossas terras o caos, a fragmentação do território e o obscurantismo.
O olhar de Varnhagen sobre a história do Brasil é o olhar do estrangeiro, do conquistador, do colonizador. Aos vencedores cabem todos os louros, aos derrotados, silêncio. Inclusive a própria vitória militar é já indício de superioridade, ela apenas confirma o já sabido. Para ele, os portugueses detêm todos os elementos necessários para a edificação aqui de uma nação grandiosa e bem sucedida, não havendo portanto motivos para resistências e rupturas.
História Geral do Brasil reforça os estereótipos sobre a fauna e a flora brasileiras, aprofundando a descrição da Carta de Pero Vaz de Caminha no ato da chegada dos invasores.
Segundo Varnhagen, nesse Éden os nativos são dignos de epítetos como "gentes vagabundas" (outro estereótipo), "bestas falsas e infiéis, inconstantes, ingratas, desconfiadas, impiedosas, despudoradas, imorais, insensíveis, indecorosas e entrecortadas por guerras, festas e pajelanças." Poderá o futuro e promissor Brasil ter nessa "alcatéia de selvagens" seu passado, seus pilares, suas raízes? Jamais!, responde Varnhagen.
O presente e o futuro do país assentam-se ambos num outro passado bem distinto, naquele que veio de fora para pôr fim à barbárie. A missão árdua, evangelizadora e civilizatória legada por Deus aos portugueses seria justamente a de dissipar o mal desta terra, levando "a palavra" e a cultura branca aos gentios pagãos e antropófagos. As origens aborígines e primitivas precisam e devem ser apagadas, para o bem da nação. O rei, a lei, a cruz, a paz e a instrução trouxeram prosperidade às essas glebas, nos integraram, ainda que fosse necessário em algumas circunstâncias o uso da espada.
NUNCA TÊM RAZÃO...
Na verdade, afirma Varnhagen, foram os índios que atacaram os brancos primeiro, comendo dois tripulantes dum navio que desembarcaram no Cabo de São Roque em 1501: "Assim, a primeira ruptura e agressão entre os da terra e os futuros colonizadores não partiu destes, os quais foram vítimas de traição e a deixaram impunes." Foi nessa mesma expedição que o "cristão D. Nuno Manuel batizou a costa brasileira com um calendário cristão nas mãos": Bahia de Todos os Santos, Salvador, São Sebastião do Rio de Janeiro, São Vicente, Angra dos Reis... Esculpiu-se no litoral brasileiro o perfil do império lusitano.
No que diz respeito ao desaparecimento avassalador de povos autóctones, Varnhagen diz que não houve genocídio ou extermínio. Os mesmos foram desaparecendo em virtude dos sucessivos cruzamentos, já que as índias tinham declarada preferência pelos brancos, mais limpos, decentes e viris.
Com relação aos negros, História Geral do Brasil apresenta poucos comentários. Varnhagen se diz "obrigado a consagrar algumas linhas a essa gente de braço vigoroso".
Afirma ele que os africanos vindos como escravos fizeram muito mal ao país, com seus "costumes pervertidos, seus hábitos indecorosos e despudorados, seus abusos, vestuários, comidas e bebidas inadequados." Melhor destino teríamos se utilizássemos a escravidão indígena ao invés da africana. Foi isso que garantiu, por exemplo, o sucesso das missões jesuíticas, afirma. Nesse aspecto, os jesuítas prestaram um desfavor à colonização pois com sua pseudofilantropia impediram que os bandeirantes caçassem e escravizassem índios. Tivemos então que importar os negros e seus males.
Varnhagen defendia ainda que o índio escravizado pelo português vivia melhor que em estado de natureza (anarquia absoluta), assim como o negro cativo estava melhor aqui que na longínqua e rústica África.
Foi durante o período da ocupação holandesa à região nordeste que Varnhagen assinala que houve a verdadeira consolidação dos laços fraternos entre brancos, índios e negros. A união das três raças para combater o inimigo comum representou uma experiência ímpar em nossa história. Nesse embate contra os infiéis holandeses, reafirmaram-se dois aspectos para Varnhagen: a sina vitoriosa portuguesa e a opção de silvícolas e africanos pela colonização lusitana cristã.
As rebeliões e conflitos da colônia contra a metrópole, Varnhagen os qualifica de "impensados, ingratos e injustos." Lisboa sempre quis o melhor para o Brasil, mesmo quando errou. Ele chamou o movimento conhecido como Inconfidência Mineira (1789) de "planos aéreos de insurreição". É ele quem elege Tiradentes como sendo o único rebelde de fato: "figura antipática, feia, espantada e ambiciosa, que tinha se dado mal no exército e na mineração... A forca lhe deu a fama que jamais tivera em sua vida medíocre".
Varnhagen achou mais apropriado ainda o sufocamento da chamada Conjuração Baiana (1798), "um arremedo do horror da Revolução Francesa." Era mais descabida e inadequada que a conspiração de Minas pois liderada por brutos e incultos. Seus líderes foram severa e justamente punidos.
HISTORIADOR COMPROMETIDO
Todo historiador é marcado pelo seu lugar social e sua "data". Varnhagen é um legítimo representante do pensamento das aristocracias do século XIX. Ele capitula ante aos fatos históricos, deturpa-os com um olhar tendencioso de cima para baixo e tortura as fontes históricas para que elas confirmem suas teses sob encomenda. Ele tenta com História Geral do Brasil implementar uma "verdade" sobre o passado brasileiro, sendo que tal verdade nada mais é que a versão de uma das classes em luta, a versão dos que venceram pela força da pólvora e agora se utilizam da força dos livros.
Os interesses mercantis, os métodos cruéis, a escravidão e os genocídios são dissimulados sob a capa da harmonia, da colaboração e do consentimento.
Seu conceito de história prioriza aspectos político-administrativos da corte, eventos, nomes e datas isolados. Ela (a história) para ele é um elencar de feitos "grandiosos", focada em indivíduos virtuosos: o "enérgico Tomé de Souza", o "benemérito Mem de Sá", o "ilustre padre Bartolomeu", o "bom, religioso e justo D. João IV", etc.
Para aqueles que vêem na Carta de Caminha a certidão de nascimento das terras recém-conquistadas, a obra de Varnhagen História Geral do Brasil, recheada de adjetivos e lusofania, representa muito bem a tentativa dum primeiro registro de identidade.
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