Entre a dinâmica do capital e a criminalização da pobreza
Wilson Enríquez
A aplicação de medidas de segurança pública na América Latina reflete o processo do capitalismo burocrático nelas existente. Para além dos discursos de manutenção da ordem pública, nossa intenção é refletir. Qual é a dinâmica do capital na aplicação das novas doutrinas de segurança pública na América Latina?
Uma olhada sobre o cenário citadino latino-americano, espaço onde se reproduzem as doutrinas da "Janela Quebrada" e da "Tolerância Zero" importadas de Nova Iorque, nos permitirá analisar três fenômenos na cena urbana da América Latina: o primeiro, a vertiginosa irrupção do negócio da segurança privada, que se estende dos serviços de vigilância e custódia até o ramo imobiliário; um segundo fenômeno é o recrudescimento das políticas estatais de criminalização da pobreza, que estigmatizam não só a condição de pobreza das pessoas, mas também a cor de sua pele e sua origem nacional; por fim, como terceiro fenômeno, o fortalecimento dos vínculos subterrâneos entre as forças repressivas estatais e o crime organizado, enquistado nos bairros pobres das cidades. Dos três fenômenos, os dois últimos talvez não sejam muito novos; no entanto, o último, principalmente, é uma realidade cotidiana e amplamente conhecida, mas que, por motivos óbvios, costuma ser desconsiderada nas reflexões públicas sobre a nova doutrina da segurança pública.
O boom do negócio da segurança privada
partir da década de 1980, a ecologia urbana das cidades latino-americanas viu-se modificada por grandes investimentos imobiliários no nicho de condomínios fechados — enclaves de riqueza que constituem uma evidente imitação do american lifestyle de Beverly Hills.
Nos "guetos dourados" da América Latina, qualquer segurança é pouca para os valiosos bens materiais das elites. A gastança na edificação de habitações suntuosas se faz sem discrição alguma. As elites latino-americanas sentem o afã de ostentar uma vida glamourosa, não poupando esforços para esfregar sua riqueza na cara dos milhões de pobres que a rodeiam.
Os gated communities possuem uma arquitetura própria da "ecologia do medo", como a denomina o sociólogo estadunidense Mike Davis; só são viáveis graças a mecanismos eletrônicos de segurança, aos quais se somam a custódia física proporcionada por um exército de vigilantes privados em número duas, três ou cinco vezes maior que o de efetivos policiais a cargo do Estado.
Os vigilantes privados, em regra, pertencem a grandes empresas de segurança, algumas delas com presença em vários países da América Latina, como, por exemplo, a PROSEGUR, que atua na Argentina, Uruguai, Brasil, Bolívia e Peru. Essas empresas dispõem de grandes contingentes de guardas, que submetem a treinamento militar constante e equipam com sofisticados armamentos, indumentárias especiais e implementos de segurança. Os proprietários dessas empresas são altos funcionários policiais ou militares, alguns em atividade, outros na reserva. A oferta de serviços inclui não apenas o resguardo físico de residências ou empresas como também o resguardo físico de pessoas e o traslado de dinheiro de entidades financeiras ou produtivas.
Esta situação evidencia que a dinâmica do capital não perdoa e é capaz de criar novos fetiches em torno do sentimento de medo e insegurança experimentado por ninguém menos que os "vencedores" no sistema capitalista, convertendo a segurança numa mercadoria que circula junto às demais.
A vigilância e custódia é apenas um dos muitos produtos da indústria da segurança3, na qual aglomeram-se outros, como os sistemas eletrônicos de alarme instalados em residências ou automóveis.
Criminalização da pobreza
Quase vizinhas, seja nas periferias ou nos vetustos casarões do centro das cidades históricas, vivem confinadas milhares de pessoas em um ambiente de miséria, no qual operários, subempregados e desempregados fixaram residência.
Os bairros periféricos, os tugúrios cêntricos ou suburbanos são o espaço onde habitam os que participam diretamente do processo de produção. Em muitos casos, a precária situação econômica desses trabalhadores obriga-os a morar próximo a desempregados convertidos em lúmpen, prostitutas ou pessoas que se dedicam ao microcomércio de substâncias tóxicas.
Em qualquer país da América Latina, esta situação serve de pretexto para que a polícia ingresse nas villas miseria, favelas ou barriadas, não necessariamente para resguardar a vida e integridade física dos moradores dos bairros mais pobres, e sim para efetuar incursões pontuais chamadas "redadas", que têm como finalidade específica a repressão, já que todo habitante dos arrabaldes citados latino-americanos é tratado como delinquente, seja isto verdade ou não, numa clara criminalização da pobreza.
A situação de miséria é caldo de cultura para bandos criminosos, quadrilhas e narcotraficantes que só despertam a preocupação do Estado policial de tempos em tempos, para saciar o desejo mórbido da imprensa especializada na vida, paixão e milagres do crime, ou para dar um sinal simbólico de uma falsa presença estatal naqueles lugares onde sua inépcia e caducidade reduziu o espaço do mundo oficial latino-americano.
São múltiplos os casos, em cidades como Bogotá, Lima ou Caracas, e, mais ainda, em Medelin, Buenos Aires ou Rio de Janeiro, em que as forças repressivas ultrajaram a dignidade de gente honesta e trabalhadora, a pretexto de procurar delinquentes. Nos últimos anos, no Rio de Janeiro, as incursões policiais estiveram acompanhadas de execuções sumárias e extrajudiciais de habitantes de favelas, procedimento abusivo, não-previsto na legislação brasileira e contrário aos princípios mais elementares de direitos humanos.
Outro dos ingredientes das práticas repressivas cotidianas na América Latina refere-se aos critérios discriminatórios, baseados nos traços fenotípicos ou na origem nacional das pessoas: os mencionados critérios servem para rotular pessoas como delinquentes, o que é frequente em cidades como Santiago, Buenos Aires ou La Paz, onde se estigmatizam cidadãos de nacionalidade colombiana ou peruana. Paradoxalmente, em Lima e Bogotá, pessoas de tez negra também são estigmatizadas como delinquentes.
Nexos entre funcionários estatais e o crime organizado
''Se vai preso, sai no outro dia,Porque tem um primo na polícia.''
Fragmento de Juanito Alimaña do cantor de salsa Héctor Lavoe.
Dentro do mundo subterrâneo da pobreza, no interior das cloacas delinquênciais, movem-se, como peixes na água, altos chefes policiais que fingem combater a criminalidade, mas simultaneamente, dirigem e protegem grandes negócios de drogas, delinquência, prostituição e extorsão contra todos os que se conduzem à "margem da lei".
A América Latina é um espaço onde o capital mundial concentra seus interesses na exploração de recursos naturais e no crescente impulso de mercados de consumo. Esta situação coexiste, paradoxalmente, com o paupérrimo estado de milhões de latino-americanos, cujo consumo tem como limite os baixos rendimentos decorrentes da precariedade laboral em suas múltiplas variantes, como o subemprego ou a eventualidade.
A contradição capital-trabalho, em especial no que toca ao trabalho precário, gera um volumoso exército de reserva de mão-de-obra que, ao não encontrar uma saída "ótima" dentro das regras do jogo do capital, vê-se levado a erigir uma nova ordem jurídica marginal e não reconhecida, que é sua resposta ao fetichismo extremado das mercadorias existentes no século XXI.
Daí que a subterraneidade em que vivem milhões de latino-americanos habitantes de favelas, ranchos ou villas miseria; a recriação de inacabáveis formas de resistência e ruptura com o capital convertem os bairros mais pobres em lugares propícios ao enquistamento de máfias especializadas em vulnerar os direitos de propriedade intelectual e romper com as estruturas limitantes da livre circulação das mercadorias através do contrabando. Lugares onde se quebra a ilusão capitalista do "contrato social" para respeitar a propriedade privada mediante o furto, o roubo e o assalto; e transcender os supostos limites morais, que em aparência e hipocrisia, o capitalismo impõe à circulação de certas mercadorias ilícitas, como as drogas, o comércio sexual e as mercadorias roubadas.
Esta é a face obscura e sórdida do capitalismo burocrático — face que, embora contrária ao discurso oficial do livre mercado, é (deve-se reconhecê-lo) plenamente funcional a este desenvolvimento do capital, pois o aceita, reimpulsiona, reproduz permanentemente e enriquece uma vasta cadeia de policiais de todos os níveis e funcionários estatais que alentam, cotidianamente, a delinquência, a prostituição e o tráfico de drogas, já que essas atividades lhes rendem gordos lucros.
Os "impostos subterrâneos" que incidem sobre o crime na América Latina em favor de uma cadeia hierárquica de policiais e burocratas, longe de ser um fato isolado, é uma característica estrutural do capitalismo. Decorre daí que as incursões policiais ou militares a bairros pobres, estigmatizados como territórios de delinquência, servem como justificativas ideológicas que encobrem práticas cotidianas de corrupção. Servem também para conter a histeria moralista midiática e, não poucas vezes, são parte de uma vendetta para realizar ajustes de contas de disputas entre facções antagônicas no interior da polícia ou das corruptas burocracias latino-americanas.
Os sequestros de magnatas ou os roubos milionários que acontecem no Rio de Janeiro, Cidade do México, São Paulo, Buenos Aires, Bogotá, Medellín, Cali, Caracas, Santiago ou qualquer outra cidade da América do Sul, costumam ser efetuados a partir de informações precisas, eficazes e pormenorizadas, às quais têm acesso, sem dificuldades, as mais treinadas equipes de inteligência desta parte do orbe.
As táticas usadas nestes atos delinquênciais coincidem com as regras básicas dos manuais militares e policiais. Inclusive, não é despropositado afirmar que, nessas ações, existe participação ativa de efetivos policiais, pois, em todos os países sul-americanos, há suficientes evidências empíricas que o comprovam. Não foi por acaso que, dentro das políticas de "Tolerância Zero" aplicadas no Peru na década de 1990, foi erigida em agravante a condição de policial em atividade ou reformado dos assaltantes que tenham perpetrado algum roubo.
Com frequência, os mais experimentados assaltantes, pistoleiros ou narcotraficantes latino-americanos entram e saem das prisões num abrir e fechar de olhos. Os mecanismos para elidir "o peso da lei" costumam ser o "apadrinhamento" de algum funcionário ou burocrata estatal e o pagamento clandestino para que a "justiça faça vista grossa".
Esta situação foi denunciada em múltiplas oportunidades pela gente pobre e honesta que constitui a maioria dos habitantes das favelas, ranchos e villas miseria latino-americanas; no entanto, essas pessoas costumam ser intimadas para que apresentem provas dos atos de corrupção que denunciam, como se o policial ou burocrata corrupto fossem ingênuos a ponto de passar recibo cada vez que se corrompem.
1. A doutrina da "Janela Quebrada", formulada em Nova Iorque, é uma teoria que pretende solucionar o problema da violência urbana sem limitar-se à atividade repressiva e recorrendo a campanhas municipais de revitalização dos espaços urbanos, coleta de lixo, entre outras, numa espécie de reedição da aplicação da teoria da "guerra de baixa intensidade".
2. A doutrina da "Tolerância Zero", continuação da doutrina da "Janela Quebrada", também se aplicou na cidade de Nova Iorque. Ela parte de uma identificação exaustiva e "científica" dos lugares com maior frequência de eventos delituosos e violentos, além da identificação dos delinquentes de forma a aplicarem-se medidas repressivas e sanções drásticas, de maneira seletiva.
3. Cabe mencionar que a conversão em mercadoria de alguns produtos relacionados á insegurança não é nova: as companhias de seguros ou brockers já foram criadas há bastante tempo.
(ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL NOVA DEMOCRACIA Ano VI, nº 42, abril de 2008 )
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